domingo, abril 17, 2005

receio

é verdade aquilo de que me acusa a consciência: tenho tido receio de escrever no meu blog.

Dantes escreviam-se cartas onde a caligrafia era apurada e fazia parte de um ritual delicioso, onde o lamber de um selo era apenas um dos passos importantes em direcção ao culminar desse empreendimento místico que era o escrever.

À medida que fomos utilizando o email, passámos a banalizar o exercício de escrever, perdendo a solenidade que muito menos se encontra nos sms que freneticamente digitamos nos telemóveis. Podem dizer que evoluímos, mas eu digo-vos que ficámos orfãos. Orfãos de mais uma tradição e mais um encanto que era abordado com cuidado e reverência. Ganhámos mais uma forma fácil de escrever e, sobretudo, mais uma forma fácil de não escrever aquilo que antes valia a pena colocar nas folhas de papel: quem escrevia, fazia por que valesse a pena.

Apesar de o utilizar à pouco tempo, apercebo-me de que o meu blog passou a ocupar o espaço e a disponibilidade mental que antes reservavam às cartas. Se eu tivesse um amor distante, era precisamente isto que faria: falava-lhe de mim, das coisas boas e más, das preocupações e felicidades. Partilharia aquilo que me enterneceu, entristeceu ou apenas a cópia de um poema que testemunhou o bater do meu coração.

O(s) blog(s) preencheu a vida dos que ansiavam por enviar cartas que fossem preenchidas de letras redigidas com cuidado num papel que dobrariam antes de depositar a esperança de ser lido, num envelope que seria endereçado para quem esperaria com ansiedade e leria com gosto o que tínhamos escrito.

Hoje, escrevo no blog. Mas fico triste ao pensar que deveria estar a escrever para alguém e não para um espaço virtual num qualquer servidor da internet. Hoje continuamos a lançar para as letras o que nos comove, sem que tenhamos depois para onde lançar as letras. Apenas para o blog? Porque terei (teremos) deixado de enviar tudo isto para alguém em particular?

Alguém me disse, não há muito tempo: "Seria incapaz de escrever num blog e deixar para os olhos de todos aquilo que sinto ou penso, quando vivo. Fica devassada a vida de quem escreve num sítio público. Ainda para mais, podendo ser comentado por quem quiser, sem necessidade de identificação."


Pensei para mim que gosto de ver, ainda que a coberto do anonimato, algumas pessoas escreverem o que sentem ou vivem, em resposta ao que outros sentiram ou viveram.
Sonho com o dia em que possa despertar em alguém o gosto por olhar para dentro de si e descobrir a imensidão de espaço preenchido de coisas boas de que nem se tinha ainda apercebido que existiam. Sonho que, a seguir, poderá existir a vontade de falar ou escrever, e discutir e partilhar com o mundo as coisas que rasgam a barreira do ordinário, superficial e banal.


Sonhas alto, não é? Mas também... o que fazes depois às enchentes que possam nascer das gotas quentes que poderás espalhar?

"Alicia vive" - pingos de chuva nas teclas do piano e, também por isso, tenho tido receio de escrever...

3 comentários:

Anónimo disse...

Bendito blog que deixa que outras sensibilidades toquem a tua...
É uma janela onde sem se ser visto se pode espreitar para o teu íntimo e para o que de mais secreto guardas dentro de ti, ainda que aqui o exponhas de uma forma subtil... É um palco onde o actor é visto sem saber quem está na plateia...ou talvez saiba...

Anónimo disse...

Não deixes de escrever...
A tua partilha de emoções pode ser verdadeiramente inspiradora. E sem dúvida, desperta muitas outras emoções.

Anónimo disse...

Não posso estar mais de acordo contigo quanto ao facto de a necessidade de escrever cartas, para pessoas como tu, eu, e muitas outras, tenha sido substituída por este meio. Não é o mesmo, é certo. No fundo, talvez seja até muito mais ambicioso, porque se destina a um público eventualmente muito mais vasto do que o amigo, o amante, o amor(todos eles e qualquer um únicos e insubstituíveis) com quem se comungavam ideias, pensamentos, emoções... mas o desejo de partilha permanece intacto. Apenas adquiriu novas formas. O diário, o amor distante, o psicanalista, o confessor... é este lugar onde escreves o que te vai na alma... onde deixas pérolas do teu "sentir" para que outros comentem e te façam ter a certeza de que não estás só.