sexta-feira, dezembro 22, 2006

memórias tolas


não há toque como o dos lábios nem loucura que se apodere de nós com mais força do que aquela que começa com um aroma carregado de sabor a desejo.

penumbra


É de manhã e o sol ainda não nasceu.
Pelo espaço que fica entre a 3ª e a 4ª pestana, espreitei para o relógio. Tinha chegado a hora se sair do espaço dos sonhos. Sonhos com ela. Invariavelmente, os sonhos eram com ela. Desfocados, como se fosse um filme sem orçamento,… mas o rosto parecia ser o dela…
A custo, lá se arrastou a carcaça para fora do espaço que ficou marcado pela presença daquele corpo na cama.

“Se falasse”, mas esta cama fala mesmo. Sobre a nossa vida: a minha e a da cama. Falamos de quem conhecemos, e de quem gostámos, de quem sentimos mais falta, e até de quem um ou outro não conhecemos; a conversa é fácil e o sorriso garantido… não posso desfazer-me desta cama, pensou baixinho enquanto sentia subir o frio do quarto pelos pés assentes no chão.

A passo, lento e pouco convicto, enfrentou mais um caminho pelo corredor sombrio e escuro – quase 14 metros de comprido – em direcção ao chuveiro. Está quase a fazer 2 anos – foi em Janeiro – que os banhos naquele chuveiro eram de água fria. Fria mesmo, sem nenhum calor por perto que não fossem os vapores decadentes da vodka da noite anterior.

Foi um tempo ordinário e banal, de tão comum que é o sentir solidão rodeado de um mundo de gente.
Por opção, por loucura, ou porque é mesmo assim, há sempre alturas em que ninguém empatiza ou adivinha o que sentimos ou pensamos. E é tão estupidamente corrente, que devia ser incluído na rotina. Não fosse esta insatisfação malvada que me consome a paciência.

Estamos acordados ou ainda a dormir?

sexta-feira, dezembro 15, 2006

natureza morta

Num esgar estúpido, foi-lhe arrancada a expressão tranquila e substituída por um semblante carregado de fel, com o sabor de uma espada de matador entalada na espinha.

Uma faena formidável. Uma virada de capote que deixou tonto… o tonto… e levantou a arena num ruído ensurdecedor de vitória.

Antes de entrar enquanto cabeceava contra as paredes, sentia-se oprimido e apertado num espaço que apenas lhe permitia estar quieto. Ansioso por liberdade, saiu em fúria, pela primeira frincha de luz que viu e arrancou à bruta a areia por debaixo dos cascos. No espaço aberto, com as mãos para dentro e um orgulho de rei, enfrentou a multidão, com a confiança de quem não tinha ainda sentido a derrota a trespassar os músculos retesados de uma força que julgava só sua.
Continuou a correr com a confiança de quem tem a seu favor o vento e a velocidade bruta de um animal selvagem. A primeira espinha sentiu-a ao de leve quando não conseguiu acertar no alvo que, com um pequeno movimento, se desviou determinado e contido, sem se assustar minimamente com aquela fera tão grande. A surpresa só foi superada pelo ferrão que sentiu espetarem-lhe com força, até ouvir o estalo que fez o ferro a partir pela bandeira.
Urros de dor.
Raiva de quem se sente enganado.
Fúria absurda.
E nova investida, para matar de vez o insecto que se atreveu a beliscar o brio do herói lá do bairro dele.
Mais rápido.
Mais forte.
Sem piedade e a antecipar o sabor do sangue da vítima na ponta dos cornos.

Os momentos de vazio foram preenchidos pela respiração suspensa dos que assistiam nas bancadas.

Na reunião dos corpos, as coisas não podiam ter sido piores. Fintado por uma simulação de mãos, atirou-se para um lado, enquanto descobria o outro flanco. Rápido e impiedoso, o alvo fez-se caçador e cravou-lhe fundo uma brasa ardente que feriu por dentro o animal e o marcou para o resto da curta vida que ainda teria.
Virou-se, empinou-se, reclamou pela falta de lisura e a angústia de ter sido enganado. Nos tempos dos cavaleiros combatia-se de frente e investia-se às cegas. Que merda de luta era esta?
Por cima daquele que se desviava e lhe enganava os olhos viu, pequeno mas brilhante, um homem com ar decidido e olhos vivos. Já os tinha visto antes, aos homens, mas não na arte de matar e não os sabia capaz disso.
Já não era o mesmo. Ferrado pela segunda vez, sentiu evadir-se a confiança e instalar-se-lhe a dúvida de vitória.
Passo directo para a morte, esta coisa da dúvida na vitória.

Encolheu-se por uns segundos e quis fugir mas não viu por onde. Viu avançar para si aquela que, no seu entender, deveria ter sido a vítima dessa noite e, desta vez, trazia agressividade a juntar à manha com que o enganara antes. Porque não tinha alternativa, respondeu ao desafio que lhe fizeram, já sem a coragem ou a convicção de antes na suspeita do mesmo resultado final. Não foi por ter sido pessimista, mas sofreu novo revés e sentiu mais uma vez rasgar-se-lhe a carne debaixo de um punção que feria mais de cada nova vez que o atacava. Já não se afastou, sentia, porque não conseguia pensar, que tinha que retorquir com o que pudesse. Enquanto estivesse de pé.
Foi a deixa de que precisava o pequeno homem de fato brilhante.
Infligiu-lhe uma derrota a seguir a outra e foi deixando a besta humilhada e cansada no campo de guerra. Com a língua de fora, pedia a misericórdia de um espaço aberto para fugir ou morrer.
Com as mãos para fora e o corpo caído lembrou-se, fugaz, de um tempo de prados verdes e vida sem morte.
Sem ter para onde ir, ora fugia ora fazia que perseguia de forma inglória quem não se deixava apanhar.
Ouvia ao longe os gritos surdos e loucos dos que torciam pelo homenzinho pequeno e o incentivavam a matar a besta.

A batalha nunca esteve por decidir. Só ele não sabia que ali estava para ser ferido, cansado e, por fim, morto.
Os animais selvagens não sabem prever e pensar e ponderar. Vivem a espumar ou a descansar e não sabem ocupar o espaço entre os extremos.
Confiante na chegada do fim e na capitulação tácita do vencido o pequeno homem iniciou a dança de vitória, debaixo do olhar, já inerte, da sombra do que tinha sido um bicho altivo.

A loucura faz parte da natureza. Todos os dias.
Enquanto, arrogante, de costas, triunfava em frente à multidão, o pequeno homem foi surpreendido pelo último suspiro de vida daquela massa gigante que o trespassou enquanto se confundia o sangue de um e do outro.

No fim, a noite foi de vitória para o público do circo:
um bilhete = dois corpos.