segunda-feira, agosto 22, 2005

E, se quem escreve, não é quem é?


A pergunta, por mais inquietante e, aparentemente ofensiva que seja, só tem uma resposta: nunca é.

Quando se escreve com ganas de escrever, anulamos e cancelamos todos os engulhos sociais que nos povoam o ser. Quem escreve, é sempre outro. É mais livre. Não tem medo. Diz o que lhe vai na telha e, sobretudo... não interage com a gente que vive à sua volta. Não é directamente condicionado, na maior parte do tempo.

Quando se lê, olha-se para o espaço de quem escreve, onde estão os sentires e os gostares, os quereres e as desamizades mais puras e mais enterradas em si.

Nunca é. Porque é tão incompleto...
É quase um exercício de covardia, quando o autor começa a acreditar que é o que escreve. Porque não é. É apenas uma pequena parte do ser, a quem faltam muitas outras peças.

Pode ser um vício tão fundo como a mais pesada das drogas. Para quem escreve, e para quem lê.
Mas, quem escreve não é todo e, quem lê, está longe de conhecer tudo.

Quem escreve é sempre muito mais do que um. Quem escreve é uma multidão que, diariamente, tenta conquistar os melhores dedos para conseguir fazer vingar o seu dizer. Imagino a batalha esquizofrénica e frenética, pelos dedos médio e indicador, em que as várias facetas se guerreiam de forma feroz, intrépida e sem quartel...
No fim, os despojos do vencedor traduzem-se na torrente de letras de mais um post...

Mas se quem escreve é mais do que um, como coabita, sem perturbar o indivíduo uno? Como a detente da guerra fria, também aqui se assiste a uma coexistência pacífica, na medida do equilíbrio de forças das partes... mas isso fica para outro dia...

Se em cada batalha diária sobrevivem sentires diversos, quem escreve vai contactando com uma parte ou outra de si. E nesse dia escreve assim, e no outro escreve assado. Quem escreve nunca é quem é, porque seriam precisas miríades de letras para compor o puzzle de quem é. Não é exequível. Simplesmente... não dá.
Para complicar a equação, juntem-lhe, ainda, aqueles autores que conseguem manipular as batalhas e escolher a faceta do dia, tipo promoção de um qualquer supermercado: “hoje, a 9,99€, não deixe de levar as coxinhas de franga...” humm... descambando... marcha atrás. Onde ia? Hum, hum... Certo.

Estes são os autores heterónimos puros porque, no fundo, o outro e os outros passam assim a ter uma vida própria, com direito a nome de baptismo e festa de 1ª comunhão. E agora, quem é, é quem? Quem é, passa a ser quem ele quiser, e quem lê, está para sempre perdido na penumbra e alheamento de um qualquer fog londrino Dickensiano.
Aqui, o nível de elaboração é tão alto, que a imagem que me assalta é a de um equilibrista a percorrer uma corda esticada por cima de uma enorme ravina, a equilibrar 2 barris nas pontas de uma vara, ou 3 barris, ou 4, ou 5... e cada vez mais perto de se esborrachar no fundo do buraco por onde decidiu passar. Equilibrismo tem limites...

Mas voltando ao que me fez arrancar, o que pode acontecer a quem lê, quando conhece quem escreve?
O que o leitor mais espera é a equivalência directa às expectativas geradas a partir das palavras escritas.
Credo!... Só de escrever me arrepia...
Porque se é quem é, o autor é um marginal!
O que pode ser, no princípio, um exercício de carácter vincado e personalidade genuína, torna-se, com o passar dos dias, no exercício déspota e tirano de alguém que não olha a quem. Não é tolerante com a diferença e arrasa o próximo na argumentação já antes ponderada ou sentida daquilo que acha, sobre quase o que quer que seja, sem qualquer preocupação particular sobre a forma em que transmite ou sobre o que sente o eventual interlocutor atropelado.
Se é quem é, existe uma grande probabilidade de o autor ser uma valentíssima besta. Disfarçada até, mas uma besta. O alheamento de que partilham tantos artistas não é uma mera coincidência.

Na maior parte dos casos, quem é, é quase imperceptível na multidão silenciosa de todos os dias e passa despercebido na sã sociabilização entre os humanos civilizados. E parece um desapontamento. Mas não devia ser. Porque quem é, também é vivente. E quando vive, convive com as gentes e tem mais de si do que apenas o que escreve. Muito mais. Influencia directamente quem passa, é afectado por quem parte ou quem chega e mantém uma troca quase homeostática com os que o rodeiam. E agora?

Agora chega o desafio para quem lê... e para quem é, também... Será suficiente a soma ponderada do que é nos textos com o que é na civilização? E suficiente para quê?
Para a segurança do estar, para a tranquilidade do respeito que pensa ter conquistado aos outros, para si.

Por vezes, quem escreve, hesita e suspira por saber se mantém a imagem de quem é nas letras; em paralelo corre o desafio que se colocou a quem lê, que tem que decidir se o resultado final está conspurcado demais, ou não, pela normalidade da pessoa humana.
E vivem em angústia, os dois, por razões diferentes, mantendo muitas vezes, entre si, o espaço e tempo necessário para não se cruzarem de forma definitiva.

Com medo que se perca uma qualquer magia, que não é real, por não ser completa.

Para muitos, isto é perturbador o suficiente para manter a noites em claro... enquanto para outros,... é mais um barril na ponta da vara.

quinta-feira, agosto 18, 2005

ando

atormentado por qualquer coisa que não sei o que é, e veio não sei de onde, dirigindo-se para sei lá que destino, enquanto passa por cima do que não vejo e atravessa espaço nenhum.

a palavra arremedo fustiga-me o espírito enquanto os olhos se rendem ao peso das pálpebras.

ando claramente... só não sei se eu, ou o outro.

...será

que me está a nascer um alter ego, como se fosse um alto de uma qualquer cabeçada que terei dado em tempos e nunca mais sarou?

é verdade que nunca vi, de cada vez que avançaram as paredes em direcção ao meu rosto e me entrava, nos olhos da esperança, a fuligem das chaminés das novas indústrias.
talvez não seja o fado de quem atira para fora de si o que outros, lá dentro, fazem por remeter para um canto escondido, perceber quando atinge de frente o céu.

cospem, respiram e até olham para ele, antes de o visitar com o que de menos bom poderia querer. passam imunes enquanto estragam o presente e o futuro, com a desculpa do que não fazem para esconder a porcaria do que são capazes.

são estúpidas, as chaminés da nossa vida, alinhadas em direcção a um qualquer ponto cardeal, à procura de uma orientação que tarda em lhes trazer o caminho para a frente dos olhos.

gentil e tão triste

Perdi o chão que pisei ontem
E nos tempos de mais atrás.
Perdi também o vazio
Onde escorregava
O meu orgulho altivo.

Os buracos que enchiam o nada dos meus dias
Foram ficando mais pequenos
Diminuindo a vontade
De não fazer coisíssima nenhuma.

Foram tempos felizes, esses.
Eram dias amenos,
De vida tão serena e suave
Como os lábios finíssimos
Que se enchiam de carne
Para me beijar.

Avancei e recuei tantas vezes,
E nem vi que, no caminho,
Perdi o teu sorriso aberto
Com os teus olhos semicerrados
De tanta força fazerem
para não deixarem fugir
a alegria que sentias.

Invejava-te a leveza
E apoquentava-me o peso do tempo
que inventei, e que, de tanto repetir para mim,
acabei por acreditar que era o meu.
E prendi as mãos aos pés.

Tenho passado o resto da vida,
a tentar separar os membros
que, por acidente, juntei no teu tempo
e não voltei a sentir separados.

Adorava poder oferecer-te de novo
Buracos enormes
Cheios de coisíssima nenhuma
Com a leveza da felicidade
Que tanto gostava de sentir em ti.

Até sempre.

quarta-feira, agosto 17, 2005

...

é verdade. confesso.

Alicia vive nos pingos de chuva que caem das teclas do piano.
As cordas retesadas expandem o espaço e páram o tempo enquanto ouvem chorar El Pele.

A viola fala, segura, enquanto os violinos sussurram e murmuram, ao longe, a admiração pela arte feita expressão.

Sacana da música... É sempre a mesma cégada...

...mas tinha tantas saudades.

aiku incompleto

se, um dia, perderes o teu olhar...
os olhos, como a música,
às vezes também mentem.

arame farpado

amarrado a si próprio, é provavelmente o único a quem não fere, nem rasga.
só de pensar, sente-se a brutalidade desta existência.

antes do tempo que devia ser teu

Pressentia o espaço vazio debaixo dos teus braços
Sempre que te arremessavas contra as portas e janelas,
Como se o destino que te estivesse fadado
Fosse semelhante ao dos vidros que quebravas
Com a violência displicente de quem não tem amanhã.

Eras arrojada,
alheada do tempo,
e a contradição aparente
inundava o meu imaginário
todos os dias e todas as noites.

Sempre houve quem te pudesse chamar de coragem,
Enquanto os teus detractores limpavam o suor do rosto
E atiravam com azedume palavras como impostora e falsa,
Ao que sempre te vi dizer que sim. Que sim. Que sim.

Dizias que era verdade, o tempo e o ímpeto
Não eram mais que um pequeno lampejo de loucura
Sem heroísmo, nem outros sentimentos de Quixote.
E calá-va-los.

Deixaram de atirar para ti o fumo e as achas de uma fogueira
Em que sempre sonharam queimar-te...
Não teriam prazer, em ver arder quem se oferecesse para morrer...
Não alimentaria os prazeres porcos de ninguém.

À medida que foste passando pela vida da gente,
Foi-se impondo a brisa suave com que limpavas o ar de respirar,
Foi-se tornando claro que há forças da natureza que não se combatem,
Foste-te tornando eterna.

Quando comecei, não te via, porque não sabia,
Enquanto cresci não te distingui, por me pareceres banal,
E mais tarde, já velho e cansado, com tempo para pensar,
Abrasou-me o peito, a saudade de não te ter.

Tenho medo de não te ver mais.
Porque quando eu morrer,
Não vou ter força, nem mérito
Para ir para perto de ti.

terça-feira, agosto 16, 2005

fading away

por muito perto que estejam de nós as maiores forças da natureza, temos muitas vezes a covardia de não as contemplar com a devoção que merecem.

independentemente do tempo... perdemos-lhe a essência da cor.

regresso

Hoje voltei ao trabalho. Com os sentidos ainda meio adormecidos, lá arrastei a carcaça pelos corredores afora e entre as secretárias do open-space onde estou “sediado”.

As férias foram boas. Descansativas.

O regresso é que está meio penoso. E não é comum, porque pertenço àquela espécie rara que gosta de voltar ao trabalho. Mas desta vez, não. Talvez seja porque a chafarica está também deserta... como a cidade, aliás.

Claramente adormecido, e sem razão para isso. Tenho dormido muito nos últimos dias e não haveria justificação para esta aparente apatia.
Vou-te gravar como draft e já venho; vou beber um café a ver se isto anima. Ainda se tivesse aqui a minha música de cortar os pulsos...Volto já.

I’m back. Mas a coisa não melhorou.

Lembrei-me agora: ultimamente tenho tido pena dos bichos... Isto também não é uma ocorrência normal...

Há alguns dias lembrei-me de outra coisa, de outro tempo. Lembrei-me de um tempo onde eu gostava de ir passear para sítios quase desconhecidos, com muita malta, fazer coisas improvisadas ao sabor do momento e reunir vontades e disposições para a aventura.

Tinha perto de 20 anos e estava no meu tempo de juventude, concerteza. Quando hoje olho para alguns e imagino outros, daqueles que percorriam esses caminhos, vejo perdida a chama de olhar e trepar (salvo seja,ou não...) pela vida acima.
É curioso o processo de envelhecimento precoce a que se sujeita a esmagadora maioria das pessoas. Perdem parte da vontade, desagrada-lhes o risco, arrumam o sentimento de conquista e calçam definitivamente as pantufas de salão com a manta xadrêz nos joelhos enquanto bebem o chá em casa, ou o café na esplanada.
Porque tanto pesam nos bolsos das gentes as pedras da ponderação?...
Porque tanto arrasta e risca o disco, a agulha do estar?... Em vez de saltar as partes picadas e continuar a tocar com a mesma genica?...
Não sei responder...
O meu sentido de contraditório diz-me: talvez seja teu (meu) o desalinhamento; provavelmente esses sentires fazem parte do tempo passado e devam ser substituídos por tudo aquilo que acabei de dizer em que a humanidade se transforma a partir da provecta idade dos late 20’s (!!!!!)
Pois... Talvez me falte o equilíbrio ou o balanço certo da música do tempo, mas garanto que sinto a mesma ânsia de viver, e fazer, e rasgar em sangue os nacos de tempo e de vida que apanho à frente.

A diferença é que hoje... Sinto mais só.


E calo a voz... a descrição evita o alheamento por marginalidade...

Gostava de explicar melhor, mas hoje este pensamento angustia-me o peito.