quarta-feira, junho 06, 2007

Homenagem fúnebre

"There is something in it that craves on pain"

Ontem foi um dia mau.

Ontem foi um dia muito mau porque ficámos mais pobres. Faleceu o Andrew Lancastre.

O Andrew foi meu professor no IADE e foi a primeira pessoa a quem ouvi dizer com propriedade que o nosso sucesso, no marketing, começa no fim da linha. Começa no correcto entendimento do que são, do que gostam e precisam aqueles a quem nos dirigimos.
Era a 3ª licenciatura em que entrava e foi a única que terminei. A minha passagem pela faculdade foi mais um passeio simpático do que uma missão. Até chegar ali. Àquelas aulas de marketing.
Desafiaram-me.
Ele, começou por me desafiar a inteligência e despertou-me a sede de conquista que sobreviveu e deixou para último plano o esforço que eram as aulas à noite depois dos dias de trabalho.
Nos anos seguintes, houve outros que continuaram a estimular o que se viria a confirmar como um percurso feliz. Mas foi ele que começou por me arrancar do marasmo.

E devo-lhe isso. Devo-lhe o tiro de partida para uma corrida de sucesso.

Mais tarde, ao terminar a licenciatura, arranquei para o MBA. Desafiado outra vez, também por ele, e inspirado no percurso que o próprio Andrew tinha feito. Foi mais um passo difícil mas determinante para a minha vida presente, ter continuado, imediatamente após os 4 anos de licenciatura, a estudar à noite. Todos os dias, outra vez.

E devo-lhe também parte disso. Devo-lhe a inspiração e o exemplo.

Quando terminei o MBA, suspeitei que poderia gostar de ensinar. E fui ter com ele e disse-lhe que gostaria de poder ensinar na escola onde tinha estudado. Gostava de tentar entusiasmar os alunos como ele e outros tinham feito comigo. E ele, e com ele também outros, acreditou que eu poderia aprender a coisa de ensinar. E ofereceu-me uma cadeira difícil. Ofereceu-me uma que precisava de um esforço violento para se consegui dar em condições. E obrigou-me a perder as noites e a sofrer a angústia da dúvida de saber se conseguiria ou não ser capaz de ensinar.

E sabem que mais? Devo-lhe isso. Devo-lhe a oportunidade de ter descoberto um sentimento genuíno de vocação.
Devo-lhe a alegria que tenho quando percebo que lhes consegui chegar, que saem daquelas salas mais animados, com mais peso para se equilibrarem no que se lhes atravessar à frente no futuro próximo.
Devo-lhe o sentimento de procura incessante de melhorar, de chamar a mim a responsabilidade de corrigir o que não ainda está bem e o preenchimento de quando consigo.
Quantas pessoas iriam acreditar que eu poderia ser um bom professor? De certeza que não muitas, mas o Andrew acreditou e empurrou-me para a frente. Eu próprio não tenho as certezas de nada e já passaram tantos anos.
Caramba, e que grato que te estou, Andrew, que ainda hoje sinto que não tenho as palavras certas para te agradecer. Mas hoje também não é fácil, sabes? Hoje foi o teu funeral e este dia custou-me muito a passar.
Quando ouvir cair a terra ao longe em cima da tampa do teu caixão, rolaram-me dentro as lágrimas que me arderam e apertaram o peito no momento em que me assaltou mais forte a realidade da tua ausência.

Tive um amigo que disse um dia que o espírito de tubarão que tinha dentro de mim tinha sido equilibrado pelo alter ego missionário que o ensino me tinha oferecido.
Não tenho dúvidas de que hoje sou uma pessoa mais rica pela oportunidade que me proporcionaste. E ainda hoje sinto o mesmo espírito de missão dos primeiros dias. E espero poder hoje, ainda, continuar a fazer-te sentir bem com a decisão que tomaste, com a confiança que me ofereceste.

Já não era pouco mas, a seguir, excedeste-te e fizeste o que poucos fizeram por mim até hoje.

Houve um dia em que te disse que me tinha despedido da minha empresa, lembras-te? E perguntei-te se não tinhas mais aulas que eu pudesse dar para poder ganhar dinheiro. E, porra, que nem pestanejaste.
A quem o conheça (tenha conhecido), soará familiar, como a mim, como se te estivesse a ouvir hoje:
“Eh pá, isso resolve-se. Tu não te preocupes que isso resolve-se.” Ao jeito dele, com a calma dele, com a leveza com que fazia as coisas pesadas parecerem quase nada.
Passaste-me parte das aulas que tu davas para eu poder ficar com todas as turmas dessa cadeira e resolveste em minutos a minha subsistência durante um ano inteiro. É que esta coisa de ser teso e achar que não se está para aturar tretas e porcarias e depois despedirmo-nos, é muito bonito, mas depois… depois, meus amigos, se não tivesse havido o Andrew a coisa tinha piado mais fininho. Mas não. Tive sorte.
Foste desprendido e foste meu amigo.

E devo-te isso. Devo-te concerteza parte da minha alegria de viver desse ano, e devo-te principalmente a satisfação que senti por ter tido um amigo que, sem pedir nada em troca, me ajudou quando eu estava a precisar de coisas tão sérias.
Porra, pá, que nem hesitaste, nem precisaste de pensar. Resolve-se e já está.

Continuaste a lembrar-te de mim, quando precisaste de professores para a Pós-Graduação e eu voltei a ter que saltar para cima de um novo animal e puxar-lhe as crinas e agarrar-me às cordas para lhe domar o espírito e senti-lo no fim a correr-me debaixo dos pés, já a passo.
E fiquei novamente a dever-te a lembrança. E o desafio. Sabias que gosto e que vivo, também, para estas horas, em que as pessoas se excedem.

E, depois disto tudo, hoje, sinto-me pobre.
Sinto-me incompleto e custa-me que tenhas morrido.
Sempre te fui grato. Sempre reconheci o que fizeste por mim, mas fui cretino o suficiente para acreditar que o tempo que teria para te retribuir não iria acabar.
Não devias ter morrido, Andrew, porque não tive oportunidade de te retribuir o bem que me fizeste.

Deixei arrastar o tempo com preocupações idiotas em vez de ter estabelecido como prioridade absoluta que deveria ter, mais do reconhecido a tua ajuda, procurado formas de te ajudar. No que eu pudesse, ou no que tu pudesses precisar.
Fui cretino e egoísta porque fiquei à espera dessa oportunidade para te poder fazer sentir um pouco do bem que tu me fizeste sentir.
Estas coisas não se esperam. As dívidas não são para ser pagas quando nos reclamam que devemos, mas tão rápido quanto pudermos.
As dívidas humanas deveriam ter juros brutais e os departamentos de cobrança deveriam ser implacáveis para o egoísmo de quem não reconhece e não retribui, o que é merecido. Hoje, amigo, sou muito pobre, porque já não tenho forma de te pagar. E quem perde sou eu por ter deixado expirar o prazo.
Deixei passar os anos e afinal, antes de te poder retribuir, morreste-me.

Somos muitas vezes uma amostra triste dos seres humanos que poderíamos ser.

Tu para mim, foste um amigo, por tudo o que te devo. E agora… agora eu, e nós, estamos muito mais pobres.