Um dia, quando era pequeno, fiquei com uma memória gravada com uma violência tão brutal que, ainda hoje sou capaz de relembrar a hora as cores exactas, os objectos e o cheiro que havia na cozinha, nesse dia.
Tinha quatro anos e passava os dias em casa, com a minha avó, que morava connosco, quando os meus pais iam para o trabalho. Já contei que tive duas mães, não foi?
Esta era a minha mãe maior.
Um dos passatempos preferidos da senhora era ensinar-me as poucas poesias que tinha aprendido até à 4ª classe.
A minha avó nasceu mo Alentejo, numa família que trabalhava no campo e, por ser a mais nova de 5 irmãos, calhou-lhe em sorte ser mandada para a escola; coisa que aliás, nunca corria bem. Ela contava com um sorriso que ainda hoje me arrepia a memória, de tão doce e sereno, que a mãe dela tinha que a ir buscar à cama, à força, para a levar para a escola. Todos os dias a minha avó inventava uma nova dor e uma nova doença para não ir para a escola. Preferia poder ir para o campo com as irmãs e irmão, onde brincava, mais do que trabalhava, porque os mais velhos tinham um carinho especial pela pequenina e não a deixavam estragar as mãos que seriam para escrever.
Então a minha bisavó, agarrava-lhe na orelha e metia-a na carroça do bisavô para a levar para a aldeia, para a escola.
A pobrezita ia todo o caminho a chorar durante os primeiros meses de cada ano escolar, pela separação que lhe impunham. Mas tinha sido decidido em concílio familiar, que alguém havia de aprender a ler e a escrever para poder ajudar a família a enfrentar a burocracias e processos da vida corrente. A pequena Custódia saiu em rifa mas, naquela idade, não lhe parecia uma solução nada católica.
O certo é que fez até à 4ª classe e, depois, lá conseguiu ir trabalhar com os irmãos para o campo.
Ficou-lhe o gosto pelas letras, sentiu a facilidade de movimento que lhe dava o saber ler e escrever e tratou de mandar, mais tarde, os seus próprios filhos para a escola, assim que pôde. Incentivava-os acarinhava a leitura e a escrita e, quando o professor primário do filho dela lhe disse: o Manuel (meu tio e padrinho) devia continuar a estudar, uma criança, com a vontade e predisposição que ele tem, devia ir mais longe.
Deixa-me relembrar o enquadramento: estamos numa aldeia rural enfiada no meio do Alentejo, numa família de trabalhadores do campo, em meados dos anos 60.
A resposta da boa da Custódia, ao mestre escola da aldeia foi só: E para onde poderemos mandar o Manuel? Quem o poderá aceitar?
E nem quando o professor lhe disse que a solução “menos cara” seria enviar o rapaz para Évora, para o seminário, se lhe quebrou a resolução. A minha avó começou a tratar de reunir as poupanças e, enquanto engolia as lágrimas, preparava o envio do menino de 10 anos para longe.
Que mulher. Que raça. Que brio de vida e abnegação. Não tenho a capacidade de análise mais imparcial do mundo, mas não consigo evitar a admiração escancarada pela dimensão desta senhora.
Por essa altura, abençoou as sovas que tinha levado da mãe para ir para escola, e agradecia-lhe, de todas as vezes que escrevia ao Manuel e de todas as vezes que recebia cartas do filho que via apenas nas férias do verão.
Podia falar mais do que é a memória do tio, mas não tenho letras hoje, para contar essa história. Apenas que morreu, com o pai, num acidente de automóvel, três meses depois eu ter nascido. A transferência foi óbvia e imediata.
Vou voltar ao início, onde comecei.
Como qualquer criança, cada vez que ficava mais de uma semana no Alentejo, adoptava o dialecto local – já na altura, camaleão – e a minha avó dizia-me: Se sabes escrever as palavras da forma certa – ainda não tinha 4 anos, já ela estava a tratar de me ensinar, e eu a aprender – então não as digas da forma errada “Falar com o acento do Alentejo não faz mal, mas tens que dizer as palavras da forma correcta”.
Bom, perdi-me outra vez.
Naquele dia, na cozinha, ela estava a fazer o “estremalho”(crochet) – já não dizia esta palavra há tanto tempo, que não consigo quantificar – sentada num mocho, em frente à janela e eu andava por ali, a trautear as poesias que ela me ia ensinando enquanto fazia correr a agulha pela linha encostada ao dedo.
Nesse dia, estava a aprender uma poesia leve sobre a morte, que ainda hoje não sei de onde terá vindo:
«À morte ninguém escapa
nem o rei nem o bispo nem o papa.
Mas eu, hei-de escapar a ela
Compro uma panela
e meto-me dentro dela.
E a morte chega e diz:
Humm, aqui não há ninguém.
Adeus meus senhores
E passem muito bem. »
A propósito do tema, lembro-me de ela me ter perguntado “O que fazias, filho (era como me tratava), se a avó morresse?” E eu respondi-lhe, pronto e rebiteso: “Não fazia nada, porque tu não vais morrer”
E pronto. Era uma verdade incontornável: a minha avó havia de ficar sempre comigo.
Mas a artista da avó Toda, fez cair a cabeça sobre o peito e ali se deixou ficar inerte... E eu fiquei a olhar para aquilo, sem perceber o que se passava...
Chamei-a. Várias vezes. E ela não respondia. Lembro-me claramente de ter começado a associar aquele mutismo ao estado em que via os corpos nos funerais a que já tinha ido.
Uma de duas. Se não se mexe, está a dormir... ou morta.
Bom, se estiver a dormir, vou acordá-la.
Abanei-a um bocadinho, e nada.
E mais um bocadinho, e nada.
Não podia estar a dormir porque eu, quando dormia e a minha avó chamava por mim de manha e me abanava o ombro, acordava.
Na minha cabeça de criança a conclusão era óbvia: a minha avó morreu. E voltou-me à memória, a pergunta que ela me tinha feito, uns momentos antes. “O que fazias...?” Curiosamente, o meu primeiro pensamento foi: tenho que lhe tirar o estremalho das mãos, não vá ele cair e estragar-se.
Mas, quando avancei para pôr a salvo as linhas entrançadas em nós, ela, receosa do que eu fosse fazer com aquilo, resolveu “acordar” e ficar viva outra vez.
Lembro-me que não chorei nem tive qualquer expressão de alegria ou tristeza, e guardei para mim a angústia que senti pela perda eminente da pessoa mais importante da minha vida.
Tudo isto se passou no espaço de 1 minuto ou 2, mas tomei imediatamente 2 resoluções, talvez as primeiras resoluções ou considerações sérias da minha vida.
Decidi que havia de saber distinguir as pessoas vivas das mortas, o que tratei de resolver ainda nesse dia ao perguntar aos meus pais, que me explicaram a história do ar a sair pela boca ou pelo nariz. Muito bem, esse assunto estava arrumado.
A resolução maior foi passar a velar pela “vida” da minha avó. Se ela podia não ficar comigo para sempre, eu achei que, se me assegurasse que ela ia respirando, então estaria a contribuir para o prolongamento da estadia da avó Toda na minha vida.
Passei a dormir com ela muito mais vezes e, quando ela adormecia, eu ia pondo o dedo debaixo do nariz para garantir que a minha avó ia ficando comigo.
Cresci e esqueci-me das minhas resoluções. Deixei de velar pela vida da minha avó enquanto dormia.
Não consegui ser o guardião que te prometi em silêncio, quando tinha 4 anos, avó.
E deixei-te morrer.
4 comentários:
Foda-se, que estou a chorar com esta prosa. Não deixaste a avó Toda morrer. Eu senti o ar a passar entre estas linhas.
Não deixaste não. E a prova viva disso é este post. Ela está bem viva na tua memória e no carinho com que sempre falas dela. Já uma vez te disse. Tenho pena de nunca me ter tido o privilégio de me cruzar com ela. Tenho a sorte, de me ter cruzado com o "filho". M.
Eu cruzei-me com ela, sim. E amei-a logo. Ela também pareceu amar-me e foi, feliz e leve, que a deixei na sua casinha do Alentejo, envolta nas brumas daquele crepúsculo estival.
Mais tarde vim a saber que ela não podia amar-me, que lhe era humanamente possível amar uma pessoa como eu, e ela era apenas uma pessoa, não uma deusa, para grande desgosto meu... e teu...
Continuo a amar a Avó Toda, tal como a conheci e amei naquela tarde soalheira no Alentejo onde, com carinho, me levou pela mão e me mostrou o seu jardim, as suas roseiras preferidas, o seu mundo para além do universo de amor que tinha por ti e para ti.
Continuo a amar a Avó Toda, e ela está viva, sim.
um amor que te ensinou a ser quem és...um amor maior do que tu...lindo!
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