Ontem, como hoje, havia um desatino que não terminava, e a sempre tão presente e certa pena de morte suspensa…
...
Ouve-se perto o ecoar de um mundo que parecia funcionar. Sente-se no ar o som das cordas retesadas que suspendem a vontade que rege os passos mais loucos. Ouve-se o balanço inquieto de um barco amarrado no cais a quem só já fazem companhia as gaivotas indolentes.
Já velho, deixou de lutar contra as amarras que o derrotaram depois de tanto tempo em que ouvia o chamado do mar. Hesitava entre a volúpia de um abismo sem fundo, lá longe no mar mas acabava sempre por se arremessar sem dó de mais uma tábua que se partia contra o cais que sustinha as cordas que não o deixavam partir.
O destino de um barco será sempre a vida no mar, mais do que a vida na água e o destino das coisas foi feito para se cumprir.
Já não me lembro da última vez que o vi, ao largo, confiante e destemido enquanto avançava entre a espuma de um mar que parecia cúmplice do navegar, como um velho amigo que nos conhece os passos e acompanha o caminho ao longo de uma qualquer viagem. Hoje, já ninguém se lembra de o ver no mar.
Distinguia-o o porte e as velas cheias de coragem de viver. Sentia-o seguro por muito que o mar a que chamava seu se fizesse bravo e hostil. Era a natureza que se cumpria e a luta não era mais que um sonho feito verdade desde os dias em que sentiu ao longe o aroma da vida salgada que o esperava.
Conhecem-se-lhe os relatos de viagens fantásticas e de gentes que falam de monstros medonhos com quem lutaram, sem dó de morrer nem medo de matar. Ouvem-se também as histórias de rochas e baixios que o tiveram preso e encalhado e partido e sem força de navegar por não ter casco que o levasse a lado nenhum. Aí, esperava pelo tempo que acabava sempre por aparecer com o que saldar dívidas antigas, carregado de gente que sabia de navegar.
Deixava-se tratar como um animal ferido que sente que o fim fugiu à frente de quem chegou. E aguardava pelo amadurecer das tábuas que seriam suas e fariam dos buracos apenas memórias longínquas e, das praias baixas onde esteve encalhado, fragmentos de um sonho que nunca mais partiria. E o sonho era cada vez maior, porque ninguém partiu das memórias que guardou sozinho.
Quase novo, com alma e ânimo redobrado, ignorava a dor e partia de novo. Se as tábuas rangiam em contacto com o sal do mar que cruzava, sorria por saber que a natureza de um conserto é mesmo assim: menos forte que novo mas suficiente para sair para fora da zona de costa e ir ter com o destino.
E uma, e outra, e outra vez.
Era um porto feito de noite escura e estrelas brilhantes que pareciam mais perto à medida que chegava. Atracou suave e esperou pelo amanhecer.
Mas o sol não veio.
Mas as estrelas eram fortes e a luz do luar parecia durar para sempre, e ficou.
Enquanto as noites passavam foi sentindo crescer os membros novos que se estendiam para lado nenhum. Sem luz de sol não navegaria e que lhe importavam outros consertos que fossem precisos? Só mais uma dor que fingiria não ver e anestesiaria o sentir.
Os grilhões estavam agora presos ao cais e quando, já tarde, sentiu a angústia da falta do mar, já não lhe valeram as forças que teve um dia e que o foram abandonando ao longo das horas intermináveis em que não navegava.
Hoje, carregado de nada e cheio de buracos por onde passeia a água, faz, em cada dia, uma nova investida, cada vez mais fraca, porque não o larga a vontade do mar, como um destino que parece não desistir de o chamar para se cumprir.
Os barcos velhos e podres, esses loucos, anseiam pelo dia em que se soltarão da prisão a que foram votados em terra ou num qualquer cais que os abandonou.
Sonham com o aroma do sal do mar carregado das lágrimas que irão deixar pelo caminho que vão trilhar pela última vez.
Lá longe, mergulhados no mar que já foi seu, baixam os braços cansados e olham ao longe pela última vez enquanto se deixam afundar num abandono à morte escolhida, tão mais digna que o viver sem destino para se cumprir.
Sonham com o aroma do sal do mar carregado das lágrimas que irão deixar pelo caminho que vão trilhar pela última vez.
Lá longe, mergulhados no mar que já foi seu, baixam os braços cansados e olham ao longe pela última vez enquanto se deixam afundar num abandono à morte escolhida, tão mais digna que o viver sem destino para se cumprir.
1 comentário:
Brutal. M.
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