segunda-feira, janeiro 17, 2005

do lado de lá


A tranquilidade do eco da bala ao deslizar para dentro da câmara enquanto ainda se ouvia o último suspiro do tambor, devolveu-me a paz fatal que me faltava nos últimos dias.
Foi bom regressar a casa. Ao lado negro do conforto e da liberdade de sentir, pensar e talvez agir. Livremente.
O eco da câmara ainda... me ecoa dentro dos ossos e a amálgama de estilhaços é o único senão no meio do mar de serenidade.

Finalmente respiro em paz e sinto o ar a passear nos pulmões sem a pressão de ter que entrar e sair com uma cadência determinada. Agora reparo... já não é necessário respirar. Desapareceram as necessidades do ser vivo a que estavam associadas as máscaras de terror que mancharam o meu ser durante tanto, tanto tempo.

De que valia a existência no meio da intranquilidade, da angústia, da infelicidade, do exaspero diário, em que ansiava por uma brecha que tardava em chegar.
Tomei-o nas mãos. Sacudi-o violentamente até brotar outro que não o que estava escrito. Nem sempre o destino acerta. Às vezes precisa de ajuda. Agora é tarde. Falhou a última tentativa de me aprisionar. Passei para o lado de lá.
E aqui já não se me aperta o nó da garganta, já não me atormentam as saudades do que nunca fui e talvez nunca pudesse ter sido. Já me não ardem os olhos pelas lágrimas que não correram, já não sinto o ranger de dentes ao aproximar da primeira luz da manhã que inaugura... que inaugurava o meu dia. Perdi as memórias boas que me poderiam ter ajudado a passar pelos tempos mais duros. E os tormentos foram vencendo a minha vontade de ser e mudaram a história dos meus dias até eu não saber quem era, ou o que fazia.
Ainda me lembro do cheiro a cinzento e do ar cor de pólvora... Se calhar as últimas impressões ficam gravadas no derradeiro quadro da vida. Ou primeiro da... da ausência de vida. Se calhar...
Em que pensarão todos os que transportam o inadiável sem perspectivas de felicidade... Porque será que insistem... em ter nada... Será que não os enche e angustia o sentimento de vazio, de vazio frio e negro?

A capacidade de sofrimento do ser humano é muito maior do que cheguei a pensar. O processo é, no entanto, curioso. Absorvem com esforço a miséria e só descansam quando a instalaram confortavelmente no meio do ser. E vivem com isto lá dentro. E guardam outras coisas, igualmente más. E vivem com elas. E lamentam-se do infortúnio e da má sorte. Seres estúpidos!
A escolha foi sempre pessoal e o fatalismo foi sempre a saída mais fácil. São infelizes os seres, e vivem assim, acorrentados às próprias escolhas, prisioneiros dos seus terrores que, um dia, convidaram a morar lá em casa.
E eu, estarei incólume ao processo aterrador que vejo desenvolver nos outros? Serei capaz de identificar uma invasão amarga de fel para dentro de mim sem que se me revoltem as entranhas? Será que também eu sou um produto daquilo que mais repudio nos outros?
A dúvida oprime os seres que se questionam e levam-nos a erguer mais alto as fronteiras da vida; da vida que se vai tornando tão mais pequena quanto mais fechados estão os caminhos, os atalhos,...
Mas agora tudo passou. Passei para lá. Para o espaço em que as lágrimas podem correr até se juntarem ao rio das lágrimas. Lá onde a serenidade do ar me invade a alma e me oferece a tranquilidade que a vida nunca me deu... ou que eu não soube ver.

Despedaçada a carne, sempre tive a dúvida se conseguiria ressuscitar a alma. Invade-me a curiosidade... Sublime momento em que se soltam as amarras do lógico, do ordinário e do desejável e do correcto. Sublime a sensação de correr sem peso e não sentir dor. Sublime...
Sublime seria não ter tido que partir para procurar, o que não teria se tivesse ficado.


Somos cada vez mais do lado de lá e menos de onde vim. Que tristeza...

11/01/2002

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