terça-feira, janeiro 18, 2005

pouca terra

Que atraso se sente quando entramos no comboio, conformados com o destino, com as intempéries da viagem, e… afinal a coisa nunca mais arranca. Não sabemos se falta o maquinista, se a carruagem está avariada ou sequer se chegámos a entrar, de tal forma incrédulo é o bater descompassado.
Adorava viajar. Acho que gostaria mais do que ficar parado nas estações, sabendo que embarcarei mais tarde ou mais cedo. Era tão mais preferível saltar para dentro da vertigem e sentir o arrebate da vida, ou da sua ausência. Ingénuo. Mais tarde ou mais cedo, também daí quereria sair, pela monotonia da repetição. Ainda que brutal e violenta.
Tão cedo não saio do limiar da porta. Curioso… o receio não parece ser o sair mas o atravessar final da última vida a que têm direito os gatos para morrerem consecutivamente, e da mesma forma irem voltando. Talvez desta arranje coragem e … quem sabe se não me aguarda alguma nova alma. Estou tão cansado desta.

Que frustação sente o comboio que transporta passageiros para terras de longe, de que ainda ninguém ouviu falar, quando afinal tem tantos lugares. Pobre máquina. E estúpida, porque sente a auto comiseração miserável dos que lamentam a sua sorte. Não é fácil levar para não sei onde quem quer que seja, especialmente porque não sabem onde é e, por outro lado, não sabem sequer quem são. Ontem como hoje, os sítios continuam distantes e os viajantes entraram um pouco ao engano. Não sabiam para onde iam e, pelo caminho, na pressão das montanhas, lamentaram a sorte, sopraram a insatisfação de quem não vê, não sente e não sabe do que se fala, ouve e cheira, onde está. Que confusão não deve ser um mercado egípcio para um esquimó ou um finlandês ascético. Quando as luzes entorpecem os aromas, os sentidos das almas revoltam-se, ainda antes de se deslumbrarem; se alguma vez. O chão que roda, a cabeça que lateja, provoca nos incautos a surpresa do descontentamento e da revolta. Quem pode censurar o que quer que seja? Não são todos talhados para viajantes. Não são todos feitos de armas e bagagens, à espera da próxima porta que se abra, para lhe saltar lá para dentro… e ver, e ver, e ver, e depois beber tudo de um só trago.

Pobre comboio. A viagem não é uma surpresa, mas a cada volta sente a montanha de forma diferente. A cor do pico que se desperta na esquina da nuvem tem um nome diferente nos lábios do viajante. E a carruagem sorri, por ouvir um nome novo para uma coisa velha. São poucas as ocasiões em que brilha o farol que ilumina os carris, mas a alma de um nome novo não pode deixar de emocionar o travessão mais velhinho que vê passar as rodas nos trilhos desde sempre.

A subida amena é sempre suave. Todos gostam de ver as cores deslizar lentamente pelos olhos, baptizadas de novo. Todos apreciam a escala de aromas enquanto a pressão não fere os mais sensíveis. A viagem tem sempre uma etapa tão linda… os viajantes nunca se recordam, durante este tempo, que eram visitas num mundo novo. Não é tão diferente do sítio de onde partiram… parece ser quase igual a cada passo, quando na realidade as flores já têm matizes e a vida é mais selvagem entre os espinhos dos arbustos. Enquanto não chega aquela curva… todos admiram o espaço como se fosse também deles. É então que a carruagem pára para os viajantes sentirem de perto o que tanto apreciavam.
Aqui perdem-se tantos… ninguém está preparado para viver longe, apenas para olhar para longe pelas vitrinas que salvaguardam o espaço conhecido, do salto para nada. Que quente que está, que frio que faz. Que selvagem e hostil é o novo espaço, à distância de um passo, quando era tão deslumbrante, do fundo do lugar atribuído ao bilhete de partida.
Que dormentes que sinto os lábios e afinal, eu tinha, não era?

Inevitavelmente, por esta altura a carruagem recolhe os passageiros que reclamavam insatisfeitos, na plataforma da estação para onde não queriam descer. Apenas ver! Como se de um circo se tratasse; ver os truques dos bichos mas não chegar perto das jaulas, não fossem as feras morder. Saem do espaço estranho tão depressa quanto podem, justificando os passos com a solidez do cimento que lhes pesa nos grilhões que os atormentaram enquanto respiravam. E só incomodaram hoje, quando vieram respirar para longe.
Apita de forma angustiada a locomotiva, quase a querer não ter saído para mais uma volta onde tudo, outra vez, se repete, à cadência do tempo que separa os sentidos dos que viajam. Desapareceu da face o sorriso invocado pelos nomes novos, mas não a esperança do destino. Quem viaja acredita que o faz com o propósito de chegar independentemente do peso do caminho. AGORA me lembro… isto é verdade para quem viaja porque decidiu viajar e não porque alguém que passava de raspão, com a violência do vento, soprou para dentro dos compartimentos da vida, quem nunca para lá queria ter entrado por si.
Agora é tarde. A meio da montanha a carruagem recomeça a subida, com a dúvida recorrente que assalta quem não dorme durante o caminho: porque saí outra vez? Corações ao alto enquanto o carvão arde na fornalha que alimenta a sede de satisfação e credulidade. Tolinha…

Agora, os viajantes já elegeram a suspeita como a mais próxima das sua amigas. Agora, os olhos ganharam o nevoeiro das manhãs deliciosas dos pinhais que se levantam mais tarde. Os dos pinhais. Cientes da aspereza do vento, embrulham-se como podem, aguardando a partir de agora, pelo regresso a casa. Como se pudessem voltar… Como se volta para os vivos depois de ver os mortos? É tão inverosímil como descer aos vales depois de gritar no altos dos cumes gelados. Infelizmente, todos querem voltar.
Sente-se a pressão do ar com a violência associada ao desaparecimento das janelas que antes protegiam tão bem o conforto…
A agonia prolonga-se pelo tempo adentro enquanto a tristeza invade os carris do alto da montanha que, mais uma vez veêm as lágrimas evaporarem da locomotiva à medida que desliza por entre as delícias que espreitam por entre os cardos e as ortigas. Que tristeza que não deve sentir quem vê tão perto afastar-se para tão longe, quem não vê de todo.

Graças à altitude não está ninguém para ver. Apenas os que viajam, tão preocupados com os sapatos que escorregam no gelo do soalho da carruagem, podem testemunhar, cegos, o que não veêm. É sempre a mesma música quando se corre e tem que saltar por cima. Acelera o passo para poder diminuir as lascas afiadas que se vão espetando no metal que reveste o temerário… a partir daqui conjugam-se a acidez com a vileza para despertar a austeridade que vai balançar a carruagem monte abaixo enquanto soluçam os carris que, solidários, olham longe para o destino nunca percorrido, e aceitam o pisar das rodas pesadas, que não tinham que descer por aqui. Outra vez. Outra vez. Outra vez. Outra vez.

A monotonia dá lugar à tácita anuência de quem sabe: é assim o movimento, para trás e para a frente. E depois para trás, novamente. Sempre. A descida é cada vez mais rápida. Os carris, ao partirem-se novamente debaixo do peso das rodas, aceleram mais uma curva que, para satisfação de quem desce, leva mais próximo o nome do ponto de partida. Estalam as madeiras, calejadas do passar das viagens. Rangem os ferros da estrutura que cede mais a cada vez que se apoia nela a curva, cada vez mais rápida, cada vez mais longe do destino, e cada vez mais perto da partida. Adormece a face da locomotiva que pede o desastre definitivo que a impeça de rolar outros caminhos. Sabe bem o vento, assim pudesse apagar as marcas dos espinhos. Mas cumpre. Amortece a queda que levará para terra quem nunca quis sair. Arrogância de quem empurra; prepotência de quem fala e, sobretudo, miséria de quem acredita.

Chegaram. Saem todos com o alívio espelhado por todos os poros que anseiam o familiar e conhecido. Nunca mais será igual, o olho que colheu o aroma da cor que foi sentida com a aspereza do tacto que nunca tiveram. E ninguém sabe. Por enquanto.
O tempo passa e, a pouco e a medo, instala-se. Antes de ser, perturba quem está perto porque não sabe bem. É diferente. Aquela aberta foi o suficiente para soltar a amarra do frio que ficou de tão longe. E os momentos correm como se fossem épocas. O gosto do espinho, fora da pressão da altitude, toma de arrebato o estar. Deslizam as horas pelo espaço afora enquanto cresce… Baixadas as guardas vê o caminho antigo e espeta-lhe o espinho guardado no esporo que ficou na pele do viajante. A partir daqui já ninguém pára a corrida que leva, invariavelmente, à velha plataforma, todos os antigos passageiros. Hoje foi, coincidentemente o último dia de viagem da carruagem. Abriram-se os carris, padeceram-se as traves do caminho e deixaram cair na curva de topo a amálgama de ferro que rezava o que sabia para deixar de acreditar. Do gelo alto não se ouve absolutamente nada. Da plataforma, os murmúrios não se atrevem a soltar as sílabas tolas das onomatopeias estúpidas dos retardatários.

Foi a última, e a carruagem ia sozinha. Talvez por isso.

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