segunda-feira, janeiro 24, 2005
os velhos
Cofiam a barba os velhos ressacados, no beco.
Por que começarei sempre o que escrevo, com tanta amargura? Porque não me dão para escrever, os momentos felizes, mas apenas aqueles em que sinto a rasgar?... Porque pareço tirar partido da angústia para me elevar, em vez de me apoiar nas asas das coisas boas?... Que raio...
Pergunto-me por vezes, até onde e até quando conseguirei conviver comigo. Provavelmente foi um resultado induzido pela situação de conflito interno e tristeza e amargura em que me encontrava na época. E mais não disse, portanto mais não pensei. Pensava eu. Hoje, ao debater com novo conflito interno, com nova tristeza de estar, relembrei-me do teste que reneguei. Talvez eu seja mesmo assim. Talvez não seja um acaso contigencial. Talvez seja uma cor de fundo, do meu quadro que, por muito que eu pinte por cima, nunca deixa de mostrar o seu reflexo metálico e presente, se inclinado à luz certa. Lembro-me do poema “...por ti quantas mães choraram, quantas filhas ficaram por casar, para que fosses nosso, ó mar.”
Não tenho respostas. Gostava que me tratassem mal e me dissessem, “Não serves.” Era mais fácil antecipar a queda que adiá-la continuamente, fugindo por entre os pingos da chuva, como tanto gosto de dizer. Gostava de ser um poeta para poder extrapolar tudo o que sinto para as letras das palavras sábias que compõem. Mas não consigo. Só consigo apreciar e lembrar-me que não sei fazer assim. Então, faço isto. Lanço para lado nenhum as pedras que me apetecia que me atirassem a mim. Estou um bocado cansado. Já vivi tanto e sinto-me tão insatisfeito. Que raio...
Hoje partiram mais alguns dos que se deitavam no beco e deixaram as latas de lixo mais vazias de si e mais cheias de porcaria nenhuma. Nunca mais se vão embora os velhos todos... Que raio... Vão devagar e vão poucos de cada vez. Até surpreende, gente tão ébria e tão pouco saudável, que dura tanto. E por ali ficam os outros inúteis a ver balançar as luzes, a ver chegar a noite e o dia, a noite e o dia, a noite e o dia...
Gente estúpida, é o que apetece dizer, não me apetecesse tanto sentar-me ao pé dos velhos e esperar a minha vez, a ver as luzes, e a noite, e o dia. Sempre lhes reconheci a coragem e disse-o alto, suficiente para todos saberem o que acho. Vingam-se hoje de mim, quando olho para os sacos que levam mais alguns, embora dali. Os outros, sentados, nem olham nem tecem o escárnio que merecia a ousadia de olhar e dizer... o que quer que fosse. Estúpido. Que sabes tu dos velhos? Que tempos tiveste para... Que raio... Que raiva de não ser, que raiva de perceber que não é, que não sou. Podia ser só ignorante e nem ver, nem nada. Mas não. Já não sei mais nada de diferente do que sabem os velhos; mas não sei tanto. Nem nada que se pareça. Mas gostava. Sem ser velho. Outra vez a fugirem as letras para as palavras de que não gosto. A ambiguidade e a incoerência de estar. Porque escrevo com tanto amargo? Porque não posso exaltar a vida, ao invés? Que atracção tão pouco saudável, que história tão pouco interessante. E não tem fim. Ainda se tivesse... Qualquer que fosse. Qualquer. Sempre era preferível à mediocridade das meias tintas. Que falta de carácter, ao olhar para os velhos que vão levados, nos sacos. Lembrei-me de couves. Lembrei-me de fleumático. Lembrei-me de curvas e lembrei-me de poetas... gosto muito dos poetas. E dos velhos.
Apesar de nunca mais morrerem todos.
Gosto da companhia que me fazem. Sinto a difusão de espaço e algum tempo, de que também privo, por privar um pouco com eles. À distância, é certo; que nem para isso... Às vezes sussurram-me do fundo do beco: “...desiste...”, dizem baixinho, e nem é um desafio, parece um conselho... E um conselho dos velhos... apesar de velhos, de ressaca e sujos, do beco. Saberão eles... claro que sim. Esta expressão... Vivos ou mortos, ouvimo-los sempre e eu então, parece que os sintonizo sempre na frequência da conversa. Podia ser bom, pudesse eu ouvir as coisas boas, mas a telefonia está avariada e só ouço estas partes. Já não consigo enfiar mais nenhum... no saco preto. Doem-me os braços... mas os velhos não param de ir embora. O curioso é que não vão de uma vez, vão indo, aos poucos e quando penso que o beco está tranquilo, lá ficam os caixotes mais cheios de coisa nenhuma.
Que raio...
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