sábado, janeiro 15, 2005

sombras de morte

A noite desceu à rua e sentiu imediatamente o sussurro de uma alma nova que se transportava de lá para cá, em círculos, à espera que se concretizasse um destino velho.

Estava dado o mote e o sentido para a lugrebidão do escuro concretizar a pobreza do homem. E da alma.

Abandonado na berma da vida deixou de sentir o sabor das cores de verão que tanto se parecem com os odores de outono que caem das árvores cor de dezembro. Era um momento de abandono e sentido do que não tinha já mais arestas e nem falhas por acertar. Comido pelos dias, estava polido pela natureza gregária e estupidificante da corrente em que participava, como figurante. Mero figurante.
Avassalados. Via-os passar tão depressa e tão pobres que metiam dó. E o umbigo? Por não olhamos para baixo e sentimos a aridez que cultivamos debaixo dos pés na esperança burra que nasçam plantas das pedras que insistimos em juntar ao lado das cruzes...

E nessa noite foi tudo igual às outras. Os ouvidos das esquinas escuras encerravam os mesmo segredos que, afinal, já não eram segredos. E as sombras.. caramba, as sombras estavam sempre diferentes. Alimentadas pelo correr do tempo, não paravam de crescer acumulando os seres que ninguém deixava vir para a rua. Fugiam em grupo nas sombras, roubando um bocadinho de luz na esperança de sentir a terra fértil. Amordaçados. E tristes. Voltavam para dentro depois de sentirem a secura do chão em que viviam os outros que os não deixavam viver.

Os piques da noite viviam de mãos dadas com o sangue de mais um sacrifício bárbaro que entumecia as sombras. A perfídia juntava-se à corrente derrubando as almas novas que suspiravam por um destino velho. Assim que chegavam sentiam-lhe o odor a negro e o perfume escuro envolvia os pequenos ramos que tinham inutilmente tentado... tentado morrer de pé.

Mas nunca adiantavam nada ao ciclo de história que se repetia nas arestas vivas -essas sim- e curvadas dos seres vivos mas mortos dentro das sombras. E porque não fugiam e partiam os fracos grilhões que os ligavam àquela senda de terror contínuo que apenas perdia a capacidade de gerar medo, tal era a monotonia dos dias que corriam, uns após os outros. Ouviam-se os ossos por dentro dos seres, rangerem à medida que diminuía o espaço, cada dia mais apertado por mais um sacrifício sangrento de uma alma nova, um novo ser que apodrecia dentro das sombras.


A ironia das sombras. Cada vez maiores, mais fortes, como sanguessugas que se alimentam e vivem da vida de um hospedeiro que matam aos poucos.
A ironia das sombras. Que saciavam a fome de vida roubando-a às costas já curvadas de quem as carregava.
A ironia das sombras que juntavam mais escamas à sofreguidão do alimento que teimava em não chegar.
Curiosa, a ironia das sombras. Infeliz e estraçalhado o destino de quem as carrega.


Às vezes em pequenos grandes arremessos sentia-se o renascer de uma alma velha para um destino novo. Lutava e contorcia-se e saía despedaçada para o espaço grande onde só passavam as sombras.
E debatia-se. E era aflitiva a proximidade daquela dor, e daquela vontade tão grande que se submetia aos rasgões do espaço que não lhe pertencia e lhe era tão hostil. E debatia-se mais ainda. E virava-se de um lado para o outro com os gemidos lancinantes de quem perde os membros, vivo. O urros de dor ecoavam nas sombras por vários dias e a memória daquela visão instalava-se nos seres inspirando-lhe o último respeito pela alma velha que tinha chegado ao destino novo.
E as sombras viam.
E não sentiam a vertigem e o pulsar de vida que abandonava a alma esgotada de tanto lutar para poder sofrer. Para poder sofrer...
E ninguém via lá dentro, por detrás dos espasmos e dos cortes de vida. Lá dentro, esvaziavam-se os seres que cumpriam as promessas antigas e pagavam por todos os que continuavam agrilhoados às sombras de que não se soltavam.

E o vento aumentava de intensidade à medida que prestava a última homenagem, enquanto na noite ecoavam as salvas de tiros que acompanham a morte dos que morrem por não ter querido viver.
E à medida que a última cinza se apagava, o vento assobiava a melodia púrpura que se ia perdendo devagar... ao fundo... deixando atrás de si os despojos de morte, enquanto a noite retirava da rua o último carrossel de vida.

6/5/2001

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