Pediram-me para escrever um epitáfio e perguntei porquê.
Foi quando me disseram: "Quem melhor que tu próprio para dizer como foram os teus últimos minutos...os teus últimos momentos..."
Gelou-se-me o sangue e senti a inevitabilidade do momento que passava por mim naquele instante. Como se um machado de decapitação se tratasse.
Estava tudo feito. E perdido. Estavam entregues à sorte os últimos arremessos de vida que deixaram a carcaça nos últimos dias. Também eles se foram embora. Resta o epitáfio. Resta só o epitáfio.
Quando corri as cortinas e olhei para trás, fechei o passado; quando respirei o aroma a madeira do meu quarto, fruí o último presente. O capítulo do futuro tinha sido suprimido da história.
Perguntariam se tinha sido de repente e, se alguém soubesse, responderia:
"Não. Foi ao longo dos últimos anos."
Num epitáfio escrevem-se as palavras que resumem a vida. O meu talvez descreva o sentir da morte.
Abate-se o peso do inalcançado, do percurso desviado, das ausências... as ausências... Titubeia a última luz da última lâmpada ao mesmo tempo que começa a correr naquela vertigem que não se reconhece, o reconhecimento simultâneo e asfixiante do que passou.
Afinal,... não foi assim tanto. É verdade o que dizem sobre os flashes:
passam num instante.
Não se pode imputar a ninguém a culpa da nossa ineficácia ou ineficiência para... para mudar o que se tenha atravessado no nosso caminho e que gostaríamos que tivesse sido diferente.
É como se de um abismo se tratasse e que nos puxa para um seio que chama e apela, acolhedor, pela nossa alma mortal e infeliz. Tão forte que era a mudar o mundo e, não conseguiu domar a vida... Que desperdício.
A mesma fonte de ideias e força anímica, acabou por tomar as rédeas de um destino à muito suspeitado curto.
O precipício abriu-se para se fechar de seguida.
De que serviu o saber, a ciência, o esforço, a aplicação, a dedicação e até, aquela tão gratificante experiência...
Fraco testemunho e fraco o reconhecimento que merece o adeus negro de uma alma infeliz.
Já o tinha sentido antes e confirmei-o de cada vez que estivemos mais junto... o adeus e eu. A cada buraco de muito negro ou muito branco, corresponde um pique subconsciente do artista que luta para deixar sair a última obra; porque a ele, ninguém avisou do fim.
Pensa esse ente que o timing era precoce e a ocasião imprópria pois se estava em curso a elaboração de tantos e tantos quadros de luz, cor e forma... Morreu só e antecipado, o artista.
Junto dele jazem tantos outros. Não os suficientes. Não jaz o pai nem o homem feliz que não nasceu, um, e o outro, não vingou e já tinha morrido.
Não necessita de ser funda nem larga a cova, pois o corpo estava magro. Vestia roupas muito largas e o vento abanava uma bainha que tinha sido cosida à mão. Que desperdício.
Os cabelos sem vida estavam como ele. Cinzentos e secos. Talvez como sempre foram... os dois.
O peito jaz, agora quieto, trancado e sufocado.
Imagino-o como um poço imenso, escuro e muito fundo com uma abertura muito pequena por onde saía, esporadicamente apenas, a avalanche de ser que ofegava o sentir. Ainda lhe vejo a tampa de ferro, com as grandes roldanas que faziam entreabrir o minguo espaço por onde fugiam... Por onde fugiam...
Ainda ouço o baque surdo do fecho que ecoava o seu tom forte e grave pelas galerias inundadas de água revolta.
Como estava cheio... Faltou-lhe o saber para saudabilizar o processo e libertar, na conta certa... Ah, a conta certa que nunca conheceu... O excesso, a ânsia e a emoção... Nada há mais que se lhe diga.
Do alto, olha com a arrogância de que sempre foi acusado e condenado, o artificie da ascensão e queda. Fechou quando quis e manobrou quanto sabia (... e como sabia) até ao desfecho que conhecia de antemão.
Morreu firme e orgulhoso, sem se despedir.
E, nem um adeus negro, acenou aos que matou.
24/5/2001
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