sexta-feira, novembro 04, 2005

apetece-me repetir

um post antigo. de Janeiro.

a beleza da arte, também pode ser dura.

...

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras
e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro!
Era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!
E eu acreditava!
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
no tempo em que o teu corpo era um aquário,
no tempo em que os teus olhos
eram peixes verdes.
Hoje são apenas os teus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor...
já não se passa absolutamente nada.

E, no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certezade que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos nada que dar.
Dentro de ti
Não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus

Eugénio de Andrade

4 comentários:

Mary Lamb disse...

Está na hora de avançar. Procurar calor noutras paredes, noutras algibeiras. Há sempre uma altura em que se torna imperioso, para a loucura não se nos entranhar nos ossos, no sentir e na vida.
Tudo continua a ser possível.
É preciso também saber dizer adeus. E quando dizer adeus...

mac disse...

como me parece que sabes... nunca é, nem será assim tõ simples. em nada da vida.

toupeira disse...

já chorei este poema demasiadas vezes. às vezes dói mas só o facto de, em tempos,

"...todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
..."

faz valer todas as lágrimas. Não há recomeços luminosos sem um ponto final antes.

Lcego disse...

Eugénio de Andrade ressuscitou no mar desta mulher novamente...mas esse é outro poema que todos temos de achar, por loucura, demência, resistência ou recusa.