quarta-feira, janeiro 12, 2005

a imagem

“Na verdade nem sequer era a morte de Basil Hallward o que lhe pesava no espírito. Era a morte da sua própria alma que o apertava. Basil pintara o retrato que lhe destruira a vida. Não lhe podia perdoar por isso.”

O retrato de Dorian Gray, cap. 20
Oscar Wilde

No espaço de uma vida enfrenta-se frequentemente o retrato da imagem.
Cada indivíduo lida com essa imagem conforme pode, mais do que conforme deseja.
Entranha-se-nos na pele, em princípio, e sai com maior ou menor facilidade consoante mais ou menos vezes tentamos... e se falta com o quê?
E se nos falta com o que retirar essa camada mais suja, que julgamos menos nossa?
Então o caminho continua e aflora-nos os músculos. Haja força para sacudir e estremecer, e estamos de volta à peliça, com o sabor de uma pequena vitória numa pequena batalha de uma grande guerra.
Faltou-nos a força: consumiram-se-nos os músculos e o avanço foi agora, esmagador e brutal. Invadidas as vísceras mais íntimas, encontramo-nos imersos no que começou por ser um retrato, uma pequena consequência de uma, ou mais paragens de tempo. Está morto o corpo.
Como qualquer guerrilheiro que acredita na sobrevivência, subimos até à montanha mais alta, para lá nos refugiarmos. “ao menos a alma”, pensamos. Que tolos. Que ingénuos. Parece que não aprendemos nada. Está e esteve sempre à nossa volta.
Ninguém tem um corpo e uma alma. Tem um ser.

A divisão impossível conduziu-nos à degradação do quadro, tendo ficado a esperança de que o que está mais fundo, estaria a salvo. Afinal era uma fortaleza. Afinal imaginávamo-la inexpugnável, pois aí guardaríamos tesouros e obras de arte que jamais seriam conspurcadas pela degradação do nível inferior.
Que tolos. Que ingénuos. Parece que não vivemos de olhos abertos.
Está ao alcance do olhar. É tão forte, que parece palpável. Mas olhamos, invariavelmente, para o outro lado. Ainda que fosse uma parede pintada à nossa frente, tentaríamos ignorá-la, olhando para além dela.
Porque fugimos da realidade e nos escondemos da ignorância?
Que tolos. Não há registo de sobreviventes, mas todos pensamos poder ser o escolhido, aquele que manterá incólume aquilo que tem de mais precioso.
Já sinto o aborrecimento que sentimos da percepção, daquele acordar penoso e duro. Mais duro do que pudéssemos imaginar.

Mas a partir daí, é como se uma monção violenta se abatesse e fizesse transbordar os rios das nossas convicções.
Afinal, vamos morrer vivos.
Afogamo-nos mesmo até ao topo, cobrindo aquela montanha que julgávamos tão alta. A enxurrada arrasta tudo pelo caminho.
Morremos vivos.
Não há dois, nem três, nem quatro, em nós. Há só um, que quando saudável pode desempenhar vários papéis em várias peças.
Mas ai do que se esquece que o homem não tem corpo nem alma; tem um Ser.
Morremos vivos.
E lembramo-nos por vezes daquela paragem, daquelas paragens, aqueles momentos em que o tempo nos marcou de tal forma, que deixámos de ser... ser. E só hoje nos apercebemos.
Morremos vivos. E não perdoamos ao tempo.

29/10/2000

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