sexta-feira, março 10, 2006

ó gente da minha terra



agora é que eu percebi
esta tristeza que trago
foi de vós que a recebi.

começa assim um fado da Mariza, que ecoa dentro dos tímpanos enquanto pára o peito de bater em homenagem à voz e ao sentimento que a malvada da mulher atira para as palavras que canta.

Deu passagem a um passo descompassado em passeio desarticulado: não era mais ninguém que não os próprios pés e pernas que empurravam o ânimo para mais um pouco de ar negro.
Ouvia ao fundo os velhos, naquela sala vazia, cheia de computadores à espera. À espera de quem pudesse, por necessidade ou piedade, dar uso ao que de melhor tinham e poderiam fazer.

que triste sina não deverá ser sentir o poder de fazer e não ter o espaço, o tempo, a oportunidade e as gentes que saibam, queiram ou aceitem fazer cumprir o que rasga, de dentro, a pele que se veste.

quanto mais se aproximam do destino, mais se ouve o rirombar seco que atira contra a jaula o fogo de um animal selvagem prestes a soltar-se.
se de longe se consegue controlar a fome por ausência de ter o que comer, experimenta atirar essa turba em fúria para um campo de cereais virgens. rapidamente se despedaçam as camisas do milho e se acendem as fogueiras, enquanto, em tensão, esperam pelo concretizar de um destino a que não podem fugir, os entumescidos grãos de milho.
experimenta dizer a uma turba de gente esfomeada que sente já escorrer nos lábios a saliva, que não podem comer. levanta-se em armas o próprio inferno, que não conhecia o imenso calor que tinha guardado.

não cabe já nas fronteiras feitas em tempo originais para as coisas primeiras, e sentem-se romper os diques artificiais que montaram para segurar naturezas prenhes de vida que sentem mais perto o aroma das cores quentes e o sabor do prazer.
semicerram-se o olhos enquanto tomamos o gosto ao que seguramos nos dentes, como que a dizer que queremos dar exclusividade ao sentir dos sabores. de tão perto, misturam-se as essências da presa e dos caçadores enquanto se constroem vidas novas e misturam os fados. ouve-se gemer baixinho cada vez mais perto, até se tornar ensurdecedor o prazer de matar a fome de comer...

fosse a fome gente: comía-nos vivos.

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