quarta-feira, maio 10, 2006

a caminho de lugar nenhum

(person at the window, by salvador dali)

E se fechasse os olhos? O que imaginava?
Não posso fechar os olhos.

Prefiro sonhar acordado.
Porquê?
É fácil de explicar: deixar correr o pensar e o imaginar pelo espaço de uma tela vazia, permite pintar a obra mais louca que queiramos e chegar a destinos virgens de qualquer contacto e contaminação pelo real. Isso, é verdade. Sonhar de olhos fechados não tem limites, mas também não faz ligação à pele de quem sonha, a partir do momento em que acorda. O desfasamento com o real é tão grande que se desvanece no ar da primeira luz que nos entra nos olhos. Fica uma memória vaga, um aroma de fundo, difícil de recordar e mais ainda, de saborear.

Sonhar de olhos abertos é um exercício de quase dissociação de ser, estar e sentir. Significa que imaginamos uma realidade alternativa com os olhos postos na vida de hoje que agarraríamos ao colo e roubávamos para um descampado livre onde, em transe de loucura, nos entregávamos ao desejo de lhe fazer nascer um filho novo. A realidade, essa mulher roubada e arrebatada, resistiria como convém a quem é arrastada para longe do sua normalidade, até sentir o calor de um querer diferente, que arde no peito quem quer e queima a pele de quem sentir tão perto o impacto capaz de derrubar couraçadas de uma qualquer samurai mais artilhado.


(the ship by salvador dali)

Quando se desprendem dos olhos estas imagens para se irem colar ao mundo presente, perdemos também um pouco de contacto com o que é possível e é normal que as estribeiras societais se desprendam do lodo onde estavam amarradas. E largam por mar adentro, a realidade e as imagens novas.

Sonhar acordado implica atirar formas e sabores novos para uma tela que já é. Enquanto navegam a rédea solta, estas gentes vão matando a sede de inspiração nas imagens criadas que vão adaptando a uma qualquer vida real que fazem por alterar. Ou até não.
Por não adormecerem, vão testemunhar na primeira pessoa os arrepios reais dos sentires que sopram de um qualquer mastro erguido a desfraldar a bandeira de uma independência nova. Países houve que se criaram de quereres assim. Gente houve que morreu pela viagem de um sonho louco.
É outro que escreve. Cerrados os dentes, agride o ar que atravessa com os olhos até chegarem ao sonho que ousou levantar a custo, de uma enxerga dormente onde jazia moribundo.
Que ganha, quem sonha acordado? Garantidamente, ganha mais penar, por sentir perto o que pode nunca chegar, ganha em desilusão por ver que as miragens podem não ser mais do que areia de um qualquer deserto árido e escaldante.

Mas também ganham. Ganham o prazer absurdo, louco e incontido de levar a alma para lá das portas do razoável e humano, enquanto seguram cimatarras nos dentes e desbravam lugares escondidos dos olhos dos outros.
E, porque estavam acordados, vão lembrar-se a vida toda. E conseguir invocar os sentires quase sempre que queiram.



(reminiscence archeologique de l'angelus by salvador dali)
E perguntem-me, como vivem felizes estas gentes?
Confesso que nem sei se é possível...
Viverão de memórias e, como se pode imaginar, optarão provavelmente por continuar a sonhar acordados.

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