sábado, janeiro 29, 2005

no freedom


...no comments

mindrestless


My Tho, Vietnam. A Viet Cong base camp being destroyed. In the foreground is Private First Class Raymond Rumpa, St Paul, Minnesota, C Company, 3rd Battalion, 47th Infantry, 9th Infantry Division, with 45 pound 90mm recoiless rifle. 04/05/1968

sexta-feira, janeiro 28, 2005

hoje foi assim

ao acordar de manhã, tropecei no imenso espaço vazio que jaz a meu lado.

o ar gelado circula livre pelo espaço deixado pela ausência dos corpos que eram devidos.




reflexo da realidade amarga. em concordância de género.


Amor Que Morre

O nosso amor morreu... Quem o diria!
Quem o pensara mesmo ao ver-me tonta,
Ceguinha de te ver, sem ver a conta
Do tempo que passava, que fugia!

Bem estava a sentir que ele morria...
E outro clarao, ao longe, ja' desponta!
Um engano que morre... e logo aponta
A luz doutra miragem fugidia...

Eu bem sei, meu Amor, que pra viver
Sao precisos amores, pra morrer,
E sao precisos sonhos para partir.

E bem sei, meu Amor, que era preciso
Fazer do amor que parte o claro riso
De outro amor impossível que ha'-de vir!


Florbela Espanca

hoje é dia de homenagens

às minhas memórias, pelas palavras de outros. Mas as memórias, são minhas.

_________//_________

Nocturno

O desenho redondo do teu seio
tornava-te mais cálida, mais nua,
quando eu pensava nele... Imaginei-o,
à beira-mar, de noite, havendo lua...

Talvez a espuma, vindo, conseguisse
ornar-te o busto de uma renda leve
e a lua, ao ver-te nua, descobrisse,
em ti, a branca irmã que nunca teve...

Pelo que no teu colo há de suspenso,
te supunham as ondas uma delas...
Todo o teu corpo, iluminado, tenso,
era um convite lúcido às estrelas...

Imaginei-te assim à beira-mar,
só porque o nosso quarto era tão estreito...
-E, sonolento, deixo-me afogar
no desenho redondo do teu peito...


David Mourão Ferreira

a certeza da inconstância de almas inquietas


só mais um para o caminho...

__________//__________


Cântico Negro

"Vem por aqui" - dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom se eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui"!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: "vem por aqui"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis machados, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.

Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;

Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
- Sei que não vou por aí.



José Régio

another troubled soul, with an happy ending

Este também era Mário... Este sim, escrevia... minha nossa.

__________//_________

Quase

Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num baixo mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim - quase a expansão...
Mas na minh'alma tude se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo... e tudo errou...
- Ai a dor de ser-quase, dor sem fim... -
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...

Momentos de alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...


Mário de Sá Carneiro

rien de rien - hope fades away


Hoje vou oferecer uma coisa diferente ao meu blog. Mais tarde se verá se crio um só para isto.
Um poema absolutamente delicioso, de um autor tremendo, com uma actualidade muito... pertinente.
Pensei: se isto se repete na minha cabeça a esta cadência, vale a pena homenagear.

________//________

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras
e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro!
Era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!
E eu acreditava!
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
no tempo em que o teu corpo era um aquário,
no tempo em que os teus olhos
eram peixes verdes.
Hoje são apenas os teus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor...
já não se passa absolutamente nada.

E, no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos nada que dar.
Dentro de ti
Não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus




Eugénio de Andrade

segunda-feira, janeiro 24, 2005

o não ser


Se não fossem os dias,
as minhas noites seriam tranquilas.

Se não fosse o acordar,
o meu dormir seria sereno.

Se não fosse o meu nascer,
a minha morte não teria sentido nenhum.



os velhos


Cofiam a barba os velhos ressacados, no beco.

Por que começarei sempre o que escrevo, com tanta amargura? Porque não me dão para escrever, os momentos felizes, mas apenas aqueles em que sinto a rasgar?... Porque pareço tirar partido da angústia para me elevar, em vez de me apoiar nas asas das coisas boas?... Que raio...

Pergunto-me por vezes, até onde e até quando conseguirei conviver comigo. Provavelmente foi um resultado induzido pela situação de conflito interno e tristeza e amargura em que me encontrava na época. E mais não disse, portanto mais não pensei. Pensava eu. Hoje, ao debater com novo conflito interno, com nova tristeza de estar, relembrei-me do teste que reneguei. Talvez eu seja mesmo assim. Talvez não seja um acaso contigencial. Talvez seja uma cor de fundo, do meu quadro que, por muito que eu pinte por cima, nunca deixa de mostrar o seu reflexo metálico e presente, se inclinado à luz certa. Lembro-me do poema “...por ti quantas mães choraram, quantas filhas ficaram por casar, para que fosses nosso, ó mar.”
Não tenho respostas. Gostava que me tratassem mal e me dissessem, “Não serves.” Era mais fácil antecipar a queda que adiá-la continuamente, fugindo por entre os pingos da chuva, como tanto gosto de dizer. Gostava de ser um poeta para poder extrapolar tudo o que sinto para as letras das palavras sábias que compõem. Mas não consigo. Só consigo apreciar e lembrar-me que não sei fazer assim. Então, faço isto. Lanço para lado nenhum as pedras que me apetecia que me atirassem a mim. Estou um bocado cansado. Já vivi tanto e sinto-me tão insatisfeito. Que raio...

Hoje partiram mais alguns dos que se deitavam no beco e deixaram as latas de lixo mais vazias de si e mais cheias de porcaria nenhuma. Nunca mais se vão embora os velhos todos... Que raio... Vão devagar e vão poucos de cada vez. Até surpreende, gente tão ébria e tão pouco saudável, que dura tanto. E por ali ficam os outros inúteis a ver balançar as luzes, a ver chegar a noite e o dia, a noite e o dia, a noite e o dia...
Gente estúpida, é o que apetece dizer, não me apetecesse tanto sentar-me ao pé dos velhos e esperar a minha vez, a ver as luzes, e a noite, e o dia. Sempre lhes reconheci a coragem e disse-o alto, suficiente para todos saberem o que acho. Vingam-se hoje de mim, quando olho para os sacos que levam mais alguns, embora dali. Os outros, sentados, nem olham nem tecem o escárnio que merecia a ousadia de olhar e dizer... o que quer que fosse. Estúpido. Que sabes tu dos velhos? Que tempos tiveste para... Que raio... Que raiva de não ser, que raiva de perceber que não é, que não sou. Podia ser só ignorante e nem ver, nem nada. Mas não. Já não sei mais nada de diferente do que sabem os velhos; mas não sei tanto. Nem nada que se pareça. Mas gostava. Sem ser velho. Outra vez a fugirem as letras para as palavras de que não gosto. A ambiguidade e a incoerência de estar. Porque escrevo com tanto amargo? Porque não posso exaltar a vida, ao invés? Que atracção tão pouco saudável, que história tão pouco interessante. E não tem fim. Ainda se tivesse... Qualquer que fosse. Qualquer. Sempre era preferível à mediocridade das meias tintas. Que falta de carácter, ao olhar para os velhos que vão levados, nos sacos. Lembrei-me de couves. Lembrei-me de fleumático. Lembrei-me de curvas e lembrei-me de poetas... gosto muito dos poetas. E dos velhos.

Apesar de nunca mais morrerem todos.

Gosto da companhia que me fazem. Sinto a difusão de espaço e algum tempo, de que também privo, por privar um pouco com eles. À distância, é certo; que nem para isso... Às vezes sussurram-me do fundo do beco: “...desiste...”, dizem baixinho, e nem é um desafio, parece um conselho... E um conselho dos velhos... apesar de velhos, de ressaca e sujos, do beco. Saberão eles... claro que sim. Esta expressão... Vivos ou mortos, ouvimo-los sempre e eu então, parece que os sintonizo sempre na frequência da conversa. Podia ser bom, pudesse eu ouvir as coisas boas, mas a telefonia está avariada e só ouço estas partes. Já não consigo enfiar mais nenhum... no saco preto. Doem-me os braços... mas os velhos não param de ir embora. O curioso é que não vão de uma vez, vão indo, aos poucos e quando penso que o beco está tranquilo, lá ficam os caixotes mais cheios de coisa nenhuma.

Que raio...


terça-feira, janeiro 18, 2005

pouca terra

Que atraso se sente quando entramos no comboio, conformados com o destino, com as intempéries da viagem, e… afinal a coisa nunca mais arranca. Não sabemos se falta o maquinista, se a carruagem está avariada ou sequer se chegámos a entrar, de tal forma incrédulo é o bater descompassado.
Adorava viajar. Acho que gostaria mais do que ficar parado nas estações, sabendo que embarcarei mais tarde ou mais cedo. Era tão mais preferível saltar para dentro da vertigem e sentir o arrebate da vida, ou da sua ausência. Ingénuo. Mais tarde ou mais cedo, também daí quereria sair, pela monotonia da repetição. Ainda que brutal e violenta.
Tão cedo não saio do limiar da porta. Curioso… o receio não parece ser o sair mas o atravessar final da última vida a que têm direito os gatos para morrerem consecutivamente, e da mesma forma irem voltando. Talvez desta arranje coragem e … quem sabe se não me aguarda alguma nova alma. Estou tão cansado desta.

Que frustação sente o comboio que transporta passageiros para terras de longe, de que ainda ninguém ouviu falar, quando afinal tem tantos lugares. Pobre máquina. E estúpida, porque sente a auto comiseração miserável dos que lamentam a sua sorte. Não é fácil levar para não sei onde quem quer que seja, especialmente porque não sabem onde é e, por outro lado, não sabem sequer quem são. Ontem como hoje, os sítios continuam distantes e os viajantes entraram um pouco ao engano. Não sabiam para onde iam e, pelo caminho, na pressão das montanhas, lamentaram a sorte, sopraram a insatisfação de quem não vê, não sente e não sabe do que se fala, ouve e cheira, onde está. Que confusão não deve ser um mercado egípcio para um esquimó ou um finlandês ascético. Quando as luzes entorpecem os aromas, os sentidos das almas revoltam-se, ainda antes de se deslumbrarem; se alguma vez. O chão que roda, a cabeça que lateja, provoca nos incautos a surpresa do descontentamento e da revolta. Quem pode censurar o que quer que seja? Não são todos talhados para viajantes. Não são todos feitos de armas e bagagens, à espera da próxima porta que se abra, para lhe saltar lá para dentro… e ver, e ver, e ver, e depois beber tudo de um só trago.

Pobre comboio. A viagem não é uma surpresa, mas a cada volta sente a montanha de forma diferente. A cor do pico que se desperta na esquina da nuvem tem um nome diferente nos lábios do viajante. E a carruagem sorri, por ouvir um nome novo para uma coisa velha. São poucas as ocasiões em que brilha o farol que ilumina os carris, mas a alma de um nome novo não pode deixar de emocionar o travessão mais velhinho que vê passar as rodas nos trilhos desde sempre.

A subida amena é sempre suave. Todos gostam de ver as cores deslizar lentamente pelos olhos, baptizadas de novo. Todos apreciam a escala de aromas enquanto a pressão não fere os mais sensíveis. A viagem tem sempre uma etapa tão linda… os viajantes nunca se recordam, durante este tempo, que eram visitas num mundo novo. Não é tão diferente do sítio de onde partiram… parece ser quase igual a cada passo, quando na realidade as flores já têm matizes e a vida é mais selvagem entre os espinhos dos arbustos. Enquanto não chega aquela curva… todos admiram o espaço como se fosse também deles. É então que a carruagem pára para os viajantes sentirem de perto o que tanto apreciavam.
Aqui perdem-se tantos… ninguém está preparado para viver longe, apenas para olhar para longe pelas vitrinas que salvaguardam o espaço conhecido, do salto para nada. Que quente que está, que frio que faz. Que selvagem e hostil é o novo espaço, à distância de um passo, quando era tão deslumbrante, do fundo do lugar atribuído ao bilhete de partida.
Que dormentes que sinto os lábios e afinal, eu tinha, não era?

Inevitavelmente, por esta altura a carruagem recolhe os passageiros que reclamavam insatisfeitos, na plataforma da estação para onde não queriam descer. Apenas ver! Como se de um circo se tratasse; ver os truques dos bichos mas não chegar perto das jaulas, não fossem as feras morder. Saem do espaço estranho tão depressa quanto podem, justificando os passos com a solidez do cimento que lhes pesa nos grilhões que os atormentaram enquanto respiravam. E só incomodaram hoje, quando vieram respirar para longe.
Apita de forma angustiada a locomotiva, quase a querer não ter saído para mais uma volta onde tudo, outra vez, se repete, à cadência do tempo que separa os sentidos dos que viajam. Desapareceu da face o sorriso invocado pelos nomes novos, mas não a esperança do destino. Quem viaja acredita que o faz com o propósito de chegar independentemente do peso do caminho. AGORA me lembro… isto é verdade para quem viaja porque decidiu viajar e não porque alguém que passava de raspão, com a violência do vento, soprou para dentro dos compartimentos da vida, quem nunca para lá queria ter entrado por si.
Agora é tarde. A meio da montanha a carruagem recomeça a subida, com a dúvida recorrente que assalta quem não dorme durante o caminho: porque saí outra vez? Corações ao alto enquanto o carvão arde na fornalha que alimenta a sede de satisfação e credulidade. Tolinha…

Agora, os viajantes já elegeram a suspeita como a mais próxima das sua amigas. Agora, os olhos ganharam o nevoeiro das manhãs deliciosas dos pinhais que se levantam mais tarde. Os dos pinhais. Cientes da aspereza do vento, embrulham-se como podem, aguardando a partir de agora, pelo regresso a casa. Como se pudessem voltar… Como se volta para os vivos depois de ver os mortos? É tão inverosímil como descer aos vales depois de gritar no altos dos cumes gelados. Infelizmente, todos querem voltar.
Sente-se a pressão do ar com a violência associada ao desaparecimento das janelas que antes protegiam tão bem o conforto…
A agonia prolonga-se pelo tempo adentro enquanto a tristeza invade os carris do alto da montanha que, mais uma vez veêm as lágrimas evaporarem da locomotiva à medida que desliza por entre as delícias que espreitam por entre os cardos e as ortigas. Que tristeza que não deve sentir quem vê tão perto afastar-se para tão longe, quem não vê de todo.

Graças à altitude não está ninguém para ver. Apenas os que viajam, tão preocupados com os sapatos que escorregam no gelo do soalho da carruagem, podem testemunhar, cegos, o que não veêm. É sempre a mesma música quando se corre e tem que saltar por cima. Acelera o passo para poder diminuir as lascas afiadas que se vão espetando no metal que reveste o temerário… a partir daqui conjugam-se a acidez com a vileza para despertar a austeridade que vai balançar a carruagem monte abaixo enquanto soluçam os carris que, solidários, olham longe para o destino nunca percorrido, e aceitam o pisar das rodas pesadas, que não tinham que descer por aqui. Outra vez. Outra vez. Outra vez. Outra vez.

A monotonia dá lugar à tácita anuência de quem sabe: é assim o movimento, para trás e para a frente. E depois para trás, novamente. Sempre. A descida é cada vez mais rápida. Os carris, ao partirem-se novamente debaixo do peso das rodas, aceleram mais uma curva que, para satisfação de quem desce, leva mais próximo o nome do ponto de partida. Estalam as madeiras, calejadas do passar das viagens. Rangem os ferros da estrutura que cede mais a cada vez que se apoia nela a curva, cada vez mais rápida, cada vez mais longe do destino, e cada vez mais perto da partida. Adormece a face da locomotiva que pede o desastre definitivo que a impeça de rolar outros caminhos. Sabe bem o vento, assim pudesse apagar as marcas dos espinhos. Mas cumpre. Amortece a queda que levará para terra quem nunca quis sair. Arrogância de quem empurra; prepotência de quem fala e, sobretudo, miséria de quem acredita.

Chegaram. Saem todos com o alívio espelhado por todos os poros que anseiam o familiar e conhecido. Nunca mais será igual, o olho que colheu o aroma da cor que foi sentida com a aspereza do tacto que nunca tiveram. E ninguém sabe. Por enquanto.
O tempo passa e, a pouco e a medo, instala-se. Antes de ser, perturba quem está perto porque não sabe bem. É diferente. Aquela aberta foi o suficiente para soltar a amarra do frio que ficou de tão longe. E os momentos correm como se fossem épocas. O gosto do espinho, fora da pressão da altitude, toma de arrebato o estar. Deslizam as horas pelo espaço afora enquanto cresce… Baixadas as guardas vê o caminho antigo e espeta-lhe o espinho guardado no esporo que ficou na pele do viajante. A partir daqui já ninguém pára a corrida que leva, invariavelmente, à velha plataforma, todos os antigos passageiros. Hoje foi, coincidentemente o último dia de viagem da carruagem. Abriram-se os carris, padeceram-se as traves do caminho e deixaram cair na curva de topo a amálgama de ferro que rezava o que sabia para deixar de acreditar. Do gelo alto não se ouve absolutamente nada. Da plataforma, os murmúrios não se atrevem a soltar as sílabas tolas das onomatopeias estúpidas dos retardatários.

Foi a última, e a carruagem ia sozinha. Talvez por isso.

segunda-feira, janeiro 17, 2005

do lado de lá


A tranquilidade do eco da bala ao deslizar para dentro da câmara enquanto ainda se ouvia o último suspiro do tambor, devolveu-me a paz fatal que me faltava nos últimos dias.
Foi bom regressar a casa. Ao lado negro do conforto e da liberdade de sentir, pensar e talvez agir. Livremente.
O eco da câmara ainda... me ecoa dentro dos ossos e a amálgama de estilhaços é o único senão no meio do mar de serenidade.

Finalmente respiro em paz e sinto o ar a passear nos pulmões sem a pressão de ter que entrar e sair com uma cadência determinada. Agora reparo... já não é necessário respirar. Desapareceram as necessidades do ser vivo a que estavam associadas as máscaras de terror que mancharam o meu ser durante tanto, tanto tempo.

De que valia a existência no meio da intranquilidade, da angústia, da infelicidade, do exaspero diário, em que ansiava por uma brecha que tardava em chegar.
Tomei-o nas mãos. Sacudi-o violentamente até brotar outro que não o que estava escrito. Nem sempre o destino acerta. Às vezes precisa de ajuda. Agora é tarde. Falhou a última tentativa de me aprisionar. Passei para o lado de lá.
E aqui já não se me aperta o nó da garganta, já não me atormentam as saudades do que nunca fui e talvez nunca pudesse ter sido. Já me não ardem os olhos pelas lágrimas que não correram, já não sinto o ranger de dentes ao aproximar da primeira luz da manhã que inaugura... que inaugurava o meu dia. Perdi as memórias boas que me poderiam ter ajudado a passar pelos tempos mais duros. E os tormentos foram vencendo a minha vontade de ser e mudaram a história dos meus dias até eu não saber quem era, ou o que fazia.
Ainda me lembro do cheiro a cinzento e do ar cor de pólvora... Se calhar as últimas impressões ficam gravadas no derradeiro quadro da vida. Ou primeiro da... da ausência de vida. Se calhar...
Em que pensarão todos os que transportam o inadiável sem perspectivas de felicidade... Porque será que insistem... em ter nada... Será que não os enche e angustia o sentimento de vazio, de vazio frio e negro?

A capacidade de sofrimento do ser humano é muito maior do que cheguei a pensar. O processo é, no entanto, curioso. Absorvem com esforço a miséria e só descansam quando a instalaram confortavelmente no meio do ser. E vivem com isto lá dentro. E guardam outras coisas, igualmente más. E vivem com elas. E lamentam-se do infortúnio e da má sorte. Seres estúpidos!
A escolha foi sempre pessoal e o fatalismo foi sempre a saída mais fácil. São infelizes os seres, e vivem assim, acorrentados às próprias escolhas, prisioneiros dos seus terrores que, um dia, convidaram a morar lá em casa.
E eu, estarei incólume ao processo aterrador que vejo desenvolver nos outros? Serei capaz de identificar uma invasão amarga de fel para dentro de mim sem que se me revoltem as entranhas? Será que também eu sou um produto daquilo que mais repudio nos outros?
A dúvida oprime os seres que se questionam e levam-nos a erguer mais alto as fronteiras da vida; da vida que se vai tornando tão mais pequena quanto mais fechados estão os caminhos, os atalhos,...
Mas agora tudo passou. Passei para lá. Para o espaço em que as lágrimas podem correr até se juntarem ao rio das lágrimas. Lá onde a serenidade do ar me invade a alma e me oferece a tranquilidade que a vida nunca me deu... ou que eu não soube ver.

Despedaçada a carne, sempre tive a dúvida se conseguiria ressuscitar a alma. Invade-me a curiosidade... Sublime momento em que se soltam as amarras do lógico, do ordinário e do desejável e do correcto. Sublime a sensação de correr sem peso e não sentir dor. Sublime...
Sublime seria não ter tido que partir para procurar, o que não teria se tivesse ficado.


Somos cada vez mais do lado de lá e menos de onde vim. Que tristeza...

11/01/2002

domingo, janeiro 16, 2005

o último poema de Fernando Pessoa


Este é o último poema de Fernando Pessoa, que ditou no leito de morte, durante o último dia de vida.

É para mim o mais belo, e tão forte que o sabor das palavras entra no ser para despertar as cores de um som tão diferente daquele que sinto durante os dias nocturnos. Cores mais agudas, sons mais vermelhos e paladares, antagonicamente, mais suaves.

"É talvez o último dia da minha vida.
Saudei o sol, levantando a mão direita,
Mas não o saudei, dizendo-lhe adeus,
Fiz sinal de gostar de o ver ainda, mais nada."
Fernando Pessoa

Mais nada. Mais nada. Curioso como a aproximação real ou o sentimento equivalente, desperta esta arte na maior parte dos artistas, de tal forma que o último sopro é sempre uma brisa abençoada que deixam na Terra, como se de uma última benesse, último favor ao mundo, se tratasse.

Que preenchimento, esta coisa da arte...


28/10/2001

sábado, janeiro 15, 2005

sombras de morte

A noite desceu à rua e sentiu imediatamente o sussurro de uma alma nova que se transportava de lá para cá, em círculos, à espera que se concretizasse um destino velho.

Estava dado o mote e o sentido para a lugrebidão do escuro concretizar a pobreza do homem. E da alma.

Abandonado na berma da vida deixou de sentir o sabor das cores de verão que tanto se parecem com os odores de outono que caem das árvores cor de dezembro. Era um momento de abandono e sentido do que não tinha já mais arestas e nem falhas por acertar. Comido pelos dias, estava polido pela natureza gregária e estupidificante da corrente em que participava, como figurante. Mero figurante.
Avassalados. Via-os passar tão depressa e tão pobres que metiam dó. E o umbigo? Por não olhamos para baixo e sentimos a aridez que cultivamos debaixo dos pés na esperança burra que nasçam plantas das pedras que insistimos em juntar ao lado das cruzes...

E nessa noite foi tudo igual às outras. Os ouvidos das esquinas escuras encerravam os mesmo segredos que, afinal, já não eram segredos. E as sombras.. caramba, as sombras estavam sempre diferentes. Alimentadas pelo correr do tempo, não paravam de crescer acumulando os seres que ninguém deixava vir para a rua. Fugiam em grupo nas sombras, roubando um bocadinho de luz na esperança de sentir a terra fértil. Amordaçados. E tristes. Voltavam para dentro depois de sentirem a secura do chão em que viviam os outros que os não deixavam viver.

Os piques da noite viviam de mãos dadas com o sangue de mais um sacrifício bárbaro que entumecia as sombras. A perfídia juntava-se à corrente derrubando as almas novas que suspiravam por um destino velho. Assim que chegavam sentiam-lhe o odor a negro e o perfume escuro envolvia os pequenos ramos que tinham inutilmente tentado... tentado morrer de pé.

Mas nunca adiantavam nada ao ciclo de história que se repetia nas arestas vivas -essas sim- e curvadas dos seres vivos mas mortos dentro das sombras. E porque não fugiam e partiam os fracos grilhões que os ligavam àquela senda de terror contínuo que apenas perdia a capacidade de gerar medo, tal era a monotonia dos dias que corriam, uns após os outros. Ouviam-se os ossos por dentro dos seres, rangerem à medida que diminuía o espaço, cada dia mais apertado por mais um sacrifício sangrento de uma alma nova, um novo ser que apodrecia dentro das sombras.


A ironia das sombras. Cada vez maiores, mais fortes, como sanguessugas que se alimentam e vivem da vida de um hospedeiro que matam aos poucos.
A ironia das sombras. Que saciavam a fome de vida roubando-a às costas já curvadas de quem as carregava.
A ironia das sombras que juntavam mais escamas à sofreguidão do alimento que teimava em não chegar.
Curiosa, a ironia das sombras. Infeliz e estraçalhado o destino de quem as carrega.


Às vezes em pequenos grandes arremessos sentia-se o renascer de uma alma velha para um destino novo. Lutava e contorcia-se e saía despedaçada para o espaço grande onde só passavam as sombras.
E debatia-se. E era aflitiva a proximidade daquela dor, e daquela vontade tão grande que se submetia aos rasgões do espaço que não lhe pertencia e lhe era tão hostil. E debatia-se mais ainda. E virava-se de um lado para o outro com os gemidos lancinantes de quem perde os membros, vivo. O urros de dor ecoavam nas sombras por vários dias e a memória daquela visão instalava-se nos seres inspirando-lhe o último respeito pela alma velha que tinha chegado ao destino novo.
E as sombras viam.
E não sentiam a vertigem e o pulsar de vida que abandonava a alma esgotada de tanto lutar para poder sofrer. Para poder sofrer...
E ninguém via lá dentro, por detrás dos espasmos e dos cortes de vida. Lá dentro, esvaziavam-se os seres que cumpriam as promessas antigas e pagavam por todos os que continuavam agrilhoados às sombras de que não se soltavam.

E o vento aumentava de intensidade à medida que prestava a última homenagem, enquanto na noite ecoavam as salvas de tiros que acompanham a morte dos que morrem por não ter querido viver.
E à medida que a última cinza se apagava, o vento assobiava a melodia púrpura que se ia perdendo devagar... ao fundo... deixando atrás de si os despojos de morte, enquanto a noite retirava da rua o último carrossel de vida.

6/5/2001

sexta-feira, janeiro 14, 2005

adeus negro


Pediram-me para escrever um epitáfio e perguntei porquê.
Foi quando me disseram: "Quem melhor que tu próprio para dizer como foram os teus últimos minutos...os teus últimos momentos..."
Gelou-se-me o sangue e senti a inevitabilidade do momento que passava por mim naquele instante. Como se um machado de decapitação se tratasse.

Estava tudo feito. E perdido. Estavam entregues à sorte os últimos arremessos de vida que deixaram a carcaça nos últimos dias. Também eles se foram embora. Resta o epitáfio. Resta só o epitáfio.

Quando corri as cortinas e olhei para trás, fechei o passado; quando respirei o aroma a madeira do meu quarto, fruí o último presente. O capítulo do futuro tinha sido suprimido da história.

Perguntariam se tinha sido de repente e, se alguém soubesse, responderia:
"Não. Foi ao longo dos últimos anos."

Num epitáfio escrevem-se as palavras que resumem a vida. O meu talvez descreva o sentir da morte.

Abate-se o peso do inalcançado, do percurso desviado, das ausências... as ausências... Titubeia a última luz da última lâmpada ao mesmo tempo que começa a correr naquela vertigem que não se reconhece, o reconhecimento simultâneo e asfixiante do que passou.
Afinal,... não foi assim tanto. É verdade o que dizem sobre os flashes:
passam num instante.

Não se pode imputar a ninguém a culpa da nossa ineficácia ou ineficiência para... para mudar o que se tenha atravessado no nosso caminho e que gostaríamos que tivesse sido diferente.
É como se de um abismo se tratasse e que nos puxa para um seio que chama e apela, acolhedor, pela nossa alma mortal e infeliz. Tão forte que era a mudar o mundo e, não conseguiu domar a vida... Que desperdício.

A mesma fonte de ideias e força anímica, acabou por tomar as rédeas de um destino à muito suspeitado curto.

O precipício abriu-se para se fechar de seguida.

De que serviu o saber, a ciência, o esforço, a aplicação, a dedicação e até, aquela tão gratificante experiência...
Fraco testemunho e fraco o reconhecimento que merece o adeus negro de uma alma infeliz.

Já o tinha sentido antes e confirmei-o de cada vez que estivemos mais junto... o adeus e eu. A cada buraco de muito negro ou muito branco, corresponde um pique subconsciente do artista que luta para deixar sair a última obra; porque a ele, ninguém avisou do fim.
Pensa esse ente que o timing era precoce e a ocasião imprópria pois se estava em curso a elaboração de tantos e tantos quadros de luz, cor e forma... Morreu só e antecipado, o artista.
Junto dele jazem tantos outros. Não os suficientes. Não jaz o pai nem o homem feliz que não nasceu, um, e o outro, não vingou e já tinha morrido.

Não necessita de ser funda nem larga a cova, pois o corpo estava magro. Vestia roupas muito largas e o vento abanava uma bainha que tinha sido cosida à mão. Que desperdício.

Os cabelos sem vida estavam como ele. Cinzentos e secos. Talvez como sempre foram... os dois.

O peito jaz, agora quieto, trancado e sufocado.
Imagino-o como um poço imenso, escuro e muito fundo com uma abertura muito pequena por onde saía, esporadicamente apenas, a avalanche de ser que ofegava o sentir. Ainda lhe vejo a tampa de ferro, com as grandes roldanas que faziam entreabrir o minguo espaço por onde fugiam... Por onde fugiam...
Ainda ouço o baque surdo do fecho que ecoava o seu tom forte e grave pelas galerias inundadas de água revolta.

Como estava cheio... Faltou-lhe o saber para saudabilizar o processo e libertar, na conta certa... Ah, a conta certa que nunca conheceu... O excesso, a ânsia e a emoção... Nada há mais que se lhe diga.

Do alto, olha com a arrogância de que sempre foi acusado e condenado, o artificie da ascensão e queda. Fechou quando quis e manobrou quanto sabia (... e como sabia) até ao desfecho que conhecia de antemão.

Morreu firme e orgulhoso, sem se despedir.

E, nem um adeus negro, acenou aos que matou.
24/5/2001

quinta-feira, janeiro 13, 2005

acerca da arte


Uma peça de arte tem a característica de evocar mais do q o espírito do artista. Seria demasiado óbvio, esse já lá está, embora encriptado atrás de uma linguagem ou imagem q ele percebe, de si para si.
A vantagem, como dizia o homem, é a existência da emoção de reflexo, de uma sociedade com a qual partilhamos os valores correntes. Esse reflexo que o artista produz, adapta-se depois à forma de cada um, concretizada na experiência pessoal e vivência que cada pessoa tem. Autobiográfico? E porque não? Minha autobiografia? Não. A de todos, em que identificamos e tomamos como nossos alguns fragmentos, ou o próprio todo. "Era capaz de jurar que em ti existe um bocadinho de cada uma daquelas gotas... Se calhar existe em cada um de nós". As palavras são tuas, mas fazem jus à obra.

De repente vemos, e sentimos a equivalência de alguma coisa que nos desperta um pequeno nada. Ou menos pequeno. E é nesta identificação ou reconhecimento de gostares e bem quereres que temos as preferências artísticas.
Gostar é assim: "Humm.... gosto!" Não é: "Vou analisar e pensar se gosto." Mas também pode ser: "Parece que estou a começar a gostar disto." E este último processo é curioso porque o ser humano demora mais tempo a fazer ligações com o seu ente mais profundo. Parece que não é nada, pois a ligação não está à superfície; mas depois emerge lentamente a reciprocidade. Que não se leia que quem estabelece com a "arte" primeiras sensações de equivalência não possa vir depois a estabelecer os laços mais fortes. É uma feliz coincidência, mas pouco relevante, no final do caminho.

O assunto é fascinante, como o são os seres humanos e aquilo que sentem, como sentem e quando sentem.
Nunca me vou esquecer do que disserem, pessoas diferentes, em ocasiões diferentes:
"O indivíduo é perigoso porque ouve para além do que se lhe diz e mais do que gostaríamos de lhe dizer".
Não foi bem assim mas a ideia era esta. E a tradição ainda é o que era: perigoso não, como nunca foi, mas um amante incondicional do pensar, do sentir e do pensamento sobre o sentimento. Isso, penso que nunca mudará.

...Parece q não estamos a comunicar mto bem... eu e as minhas mão. Se já disse que por ora, chegam de dissertações... Teimam os dedos e toldam-se-lhe as barreiras da censura para escreverem sozinhos aquilo de que gostam. Sempre faltou quem percebesse os dedos... "This world was never ment..."


18/4/2001

quarta-feira, janeiro 12, 2005

a imagem

“Na verdade nem sequer era a morte de Basil Hallward o que lhe pesava no espírito. Era a morte da sua própria alma que o apertava. Basil pintara o retrato que lhe destruira a vida. Não lhe podia perdoar por isso.”

O retrato de Dorian Gray, cap. 20
Oscar Wilde

No espaço de uma vida enfrenta-se frequentemente o retrato da imagem.
Cada indivíduo lida com essa imagem conforme pode, mais do que conforme deseja.
Entranha-se-nos na pele, em princípio, e sai com maior ou menor facilidade consoante mais ou menos vezes tentamos... e se falta com o quê?
E se nos falta com o que retirar essa camada mais suja, que julgamos menos nossa?
Então o caminho continua e aflora-nos os músculos. Haja força para sacudir e estremecer, e estamos de volta à peliça, com o sabor de uma pequena vitória numa pequena batalha de uma grande guerra.
Faltou-nos a força: consumiram-se-nos os músculos e o avanço foi agora, esmagador e brutal. Invadidas as vísceras mais íntimas, encontramo-nos imersos no que começou por ser um retrato, uma pequena consequência de uma, ou mais paragens de tempo. Está morto o corpo.
Como qualquer guerrilheiro que acredita na sobrevivência, subimos até à montanha mais alta, para lá nos refugiarmos. “ao menos a alma”, pensamos. Que tolos. Que ingénuos. Parece que não aprendemos nada. Está e esteve sempre à nossa volta.
Ninguém tem um corpo e uma alma. Tem um ser.

A divisão impossível conduziu-nos à degradação do quadro, tendo ficado a esperança de que o que está mais fundo, estaria a salvo. Afinal era uma fortaleza. Afinal imaginávamo-la inexpugnável, pois aí guardaríamos tesouros e obras de arte que jamais seriam conspurcadas pela degradação do nível inferior.
Que tolos. Que ingénuos. Parece que não vivemos de olhos abertos.
Está ao alcance do olhar. É tão forte, que parece palpável. Mas olhamos, invariavelmente, para o outro lado. Ainda que fosse uma parede pintada à nossa frente, tentaríamos ignorá-la, olhando para além dela.
Porque fugimos da realidade e nos escondemos da ignorância?
Que tolos. Não há registo de sobreviventes, mas todos pensamos poder ser o escolhido, aquele que manterá incólume aquilo que tem de mais precioso.
Já sinto o aborrecimento que sentimos da percepção, daquele acordar penoso e duro. Mais duro do que pudéssemos imaginar.

Mas a partir daí, é como se uma monção violenta se abatesse e fizesse transbordar os rios das nossas convicções.
Afinal, vamos morrer vivos.
Afogamo-nos mesmo até ao topo, cobrindo aquela montanha que julgávamos tão alta. A enxurrada arrasta tudo pelo caminho.
Morremos vivos.
Não há dois, nem três, nem quatro, em nós. Há só um, que quando saudável pode desempenhar vários papéis em várias peças.
Mas ai do que se esquece que o homem não tem corpo nem alma; tem um Ser.
Morremos vivos.
E lembramo-nos por vezes daquela paragem, daquelas paragens, aqueles momentos em que o tempo nos marcou de tal forma, que deixámos de ser... ser. E só hoje nos apercebemos.
Morremos vivos. E não perdoamos ao tempo.

29/10/2000

terça-feira, janeiro 11, 2005

gota d'água

Era uma vez uma gota de água que iniciou o caminho subindo com dificuldade aquela pequena elevação que a separava da origem.

Foi uma partida dolorosa; não menos que as partidas onde se separam familiares ou entes chegados. Tinha de ser. Alguém tinha de partir porque era assim que a natureza o impunha. A esta partida seguir-se-iam outras, muitas ou poucas, mas igualmente penosas porque também assim o impõe a natureza.
São difíceis estas partidas, mas bem vindas as suas chegadas. Como explicar? Uma a uma despedem-se das outras deixando a saudade de quem já não volta. No entanto, a sua chegada é motivo de alívio; não de alegria ou contentamento, mas de alívio.
Depois de atravessar aquela primeira elevação, espera-a uma descida suave em que a sua passagem é sentida por vezes como um bálsamo que refresca o caminho que percorre, mas noutras, como um ardor e uma ira que se levanta pela perda de mais uma gota d’água.
É aqui a chegada. É nesta descida em que a gota rola sobre si, reflexo de luz, que se define o seu destino, a sua razão de ser.
Curiosamente é nesta dualidade que se trava a batalha: na partida e na chegada.
Terá sido uma partida forçada, em que a gota foi empurrada para partir, esperando-se dela grandes feitos, capaz de remediar grandes males? Pobre da gota que parte com expectativas tão elevadas para cumprir naquele espaço de tempo em que parte, rola e chega. Esta é talvez a gota mais triste, pois é quase sempre incapaz de consolar e confortar o que lhe deu origem.

E que outras gotas haverão?
Temos aquelas que, qual processo autónomo, parecem não depender de nada nem ninguém e irrompem no seu caminho arrastando tantas outras para a mesma causa. O sucesso da sua missão está praticamente garantido à partida, pois à chegada são saudadas como explosão de uma energia mal contida e indesejável para o ente que lhes deu origem. Alguma mágoa, mas também a paz pela expulsão de não quereres. Saudades sim, mas gratidão maior ainda, para essa gota de coragem e valores elevados.

Falta a última espécie de gota . Aquela que se encontra quase seca de tão pouco ter sido alimentada ou solicitada. Tem um sabor amargo e uma aspereza que não são características das anteriores. Está quase só na sua fonte e sente que nem forçada, nem sozinha, se conseguirá levantar e percorrer o caminho que lhe estava destinado. Não será alívio, não será ardor, não será paz nem será ira, deixando mais pobre aquele que lhe devia ter dado origem. E assim vai secando aos poucos, guardando em si aquela imensidão de coisas que deveria ter sido responsável por expulsar.

Porque não choras, alma...

21/3/1999